Cinema nacional

Pertencimento e homossexualidade são temas de ‘Antes o Tempo Não Acabava’

A polêmica ficção de Sérgio Andrade e Fábio Baldo acompanha Anderson, um indígena que questiona as tradições de seu povo e sua sexualidade

Divulgação

Filme que tem como tema central o questionamento da identidade das novas gerações indígenas escorrega na homofobia, historicamente reforçada pelas religiões brancas

São Paulo – “Você pode tirar uma cobra do Japão, trazer para cá e ela vai continuar sendo sempre uma cobra. A mesma lógica se aplica ao índio: na aldeia ou na cidade, ele sempre será um indígena”. É o que diz um pajé no filme Antes o Tempo Não Acabava, dirigido por Sérgio Andrade e Fábio Baldo. O longa-metragem de ficção, que estreou na última semana em salas brasileiras, tem apenas 85 minutos e uma capacidade devastadora de fazer com que o espectador se questione sobre o que acabou de assistir.

O filme traz como protagonista o ator indígena Anderson Tikuna interpretando um personagem homônimo que, em conflito com as tradições do seu povo, contraria os líderes da sua comunidade para morar sozinho no centro de Manaus. Lá, ele experimenta novos sentimentos e enfrenta os desafios da descoberta da sua sexualidade. Para o desenvolvimento do longa, a equipe afirma ter se inspirado “na realidade de vários indígenas que se instalam em Manaus, ora expulsos de suas terras, ora atraídos pelo falso ideal da vida na cidade”.

As primeiras cenas já demonstram a beleza estética da obra, com imagens de um ritual de passagem para a idade adulta feito com meninos da etnia Sateré Mawé. Para que alcancem maturidade e masculinidade, a tribo prepara uma poção com formigas tucandeiras e coloca os insetos semi-adormecidos em luvas que serão vestidas pelos meninos. A dor das picadas de alguma forma já anuncia que o medo e a rejeição de Anderson vão permear todo o filme.

Já adulto, ele trabalha em uma fábrica na Zona Franca de Manaus e volta todo dia para a aldeia, na periferia de Manaus. Anderson não parece pertencer nem lá nem cá e é esta a questão fundamental do longa-metragem. O jovem não aceita a forma com que sua comunidade lida com a filha de sua irmã, uma criança com sérios problemas de desenvolvimento. 

DivulgaçãoAnderson criança
Anderson durante o rito de passagem para a fase adulta

Quando a irmã de Anderson volta para a floresta, ele decide ir morar na cidade e sua decisão não é bem aceita pelos membros da tribo. Sozinho no caos urbano, ele desconfia de tudo naquele ambiente hostil, mas mesmo assim se joga de corpo inteiro na descoberta de sua sexualidade, também renegada e condenada pela sua tribo. Neste ponto, entra outra questão polêmica: o pajé refaz à força o rito das formigas porque ele não funcionou da primeira vez e Anderson tem de passar a “enxergar” as mulheres.

O filme que tem como tema central o questionamento sobre a identidade das novas gerações indígenas, acaba escorregando em uma questão que talvez tenha nascido com as religiões brancas: a homofobia. Sobre a morte da criança com deficiência, fica a dúvida se a descontextualização do fato não reforça ainda mais a estereotipação dos índios como bárbaros. Em um momento em que o conservadorismo atinge em cheio país (e o mundo), impossível não assistir a este filme com olhar desconfiado.

Uma produção Rio Tarumã e 3 Moinhos e com coprodução da berlinense Autentika, Antes o Tempo Não Acabava criou uma fervorosa discussão durante o Festival de Brasília, no ano passado. Apesar das polêmicas, o longa ganhou prêmios, entre eles o de Melhor Filme e Melhor Ator no 20° International Queer Film Festival – Queer Lisboa; de Melhor Ator, Melhor Roteiro e Melhor Filme no 23º Festival de Cinema de Vitória e os de Melhor filme pelo Júri da Crítica e Melhor Roteiro no 10° For Rainbow – Festival de Cinema e Cultura da Diversidade Sexual.

CartazAntes o Tempo Não Acabava
Direção: Sérgio Andrade e Fábio Baldo
Elenco: Anderson Tikuna, Rita Carelli, Begê Muniz, Severiano Kedassere, Kay Sara, Ana Sabrina, Fidelis Baniwa, Emanuel Araújo
Roteiro: Sérgio Andrade
Produtores: Ana Alice de Morais, Sérgio Andrade
Coprodutores: Paulo Carvalho, Gudula Meinzolt
Cordenação de produção: Sidney Medina, Elenise Maia
Direção de fotografia: Yure César
Direção de arte: Oscar Ramos
Som direto: Nicolas Hallet
Figurino: Adroaldo Pereira
Edição e desenho de som: Fábio Baldo
Assistência de direção: Marianne Macedo Martins
Empresas produtoras: Rio Tarumã, 3 Moinhos
Empresa coprodutora: Autentika
Gênero: drama
Países: Brasil, Alemanha
Ano: 2016
Línguas: Português, Tikuna, Sateré Mawé, Neenguetu, Tariano
Classificação indicativa: 16 anos
Distribuição: Livre Filmes