Letras e imagens

Laerte, Fux, Lira e Kucinski: reflexões sobre literatura, jornalismo e país

Escritores e cartunista falam sobre narrativas, memória e criação. Com ou sem democracia

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A professora Vera Bastazin, mediadora, e os escritores Lira Neto e Jacques Fux: ingresso na literatura em busca de memórias

São Paulo – Jornalista “por acaso”, depois de largar duas faculdades e encontrar um emprego de revisor, Lira Neto enveredou pela literatura para preservar memória. Jacques Fux buscou libertação. Bernardo Kucinski sente-se feliz ao superar um “vazio” e passar a escrever ficção. E Laerte Coutinho, antes de virar cartunista, pensava em fazer música, teatro ou cinema. Cada um deles refletiu sobre o ofício e o Brasil, em debates realizados ontem (24), durante o Festival Literário da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, a FliPUC, na zona oeste de São Paulo. Nesta primeira edição, que termina hoje, o autor homenageado foi o escritor Paulo Freire, que, coincidentemente, é tema de uma campanha aberta na própria PUC em defesa da manutenção do seu nome como Patrono da Educação Brasileira.

No caso do cearense Lira Neto, há pouco mais de 15 anos em São Paulo, uma “epifania” aconteceu ainda em Fortaleza, quando um colega do jornal O Povo voltou da rua com uma história que a princípio seria banal, sobre obras de saneamento no centro da cidade, mas trouxe um relato sobre corpos que iam sendo encontrados à medida que os operários escavavam. Muitos corpos. Foi assunto durante vários dias, mas ninguém sabia do que se tratava. Até que um pesquisador ralhou com a redação inteira: “Cadê a memória de vocês?”. E contou que aquelas eram vítimas da varíola, que décadas antes havia dizimado um quinto da população da capital do Ceará. 

“Foi aí que percebi que poderia fazer jornalismo com outra perspectiva, outra profundidade”, conta Lira Neto, autor de biografias de personagens distintos como José de Alencar, Padre Cícero, Getúlio Vargas e Maysa, além de um livro sobre o samba. Aquele episódio rendeu um livro (O Poder e a Peste), que o autor diz nunca mais querer ver publicado. Ele conta também detestar o termo “jornalismo literário”, como se a segunda palavra tivesse de qualificar a primeira. “Eu prefiro falar de literatura de não-ficção.”

Segundo Lira – atualmente estudando na própria PUC e preparando um livro sobre a relação entre o samba e a Rádio Nacional –, até pouco tempo atrás as biografias tinham má reputação na academia com certa razão: “Muita contrafação, muito empirismo, muito chutômetro”. Alguns, diz ele, usavam a imaginação para compensar falhas de pesquisa. “Nenhuma linha do que escrevi é fruto da minha imaginação”, afirma. Mas pode ter um certo elemento de invenção: “Toda narrativa, de qualquer natureza, é uma reconstrução”. 

Os três volumes sobre Getúlio foram escritos sem autorização da família. Ao terminar o primeiro, teve um encontro com a professora Celina Vargas, neta do ex-presidente. Ela perguntou qual seria o período abrangido no segundo – 1930/1945, respondeu Lira. Celina disse, então, que não iria ler. O autor quis saber a razão, e ela explicou que não gostaria de ler sobre a fase do Estado Novo, que incluiria tortura, Filinto Müller (chefe da polícia política), prisão de Graciliano Ramos. Mas lembrou que tudo aquilo fazia parte da história.

Mitos e versões

Escrever biografias também é desnudar mitos, diz Lira Neto. Ao falar da cantora Maysa, por exemplo, descobriu que ela “mentia” para os próprios diários. “A memória é seletiva e é assim construída. Nós próprios temos memórias que nunca existiram”, diz, acrescentando que “os fatos se perdem para sempre assim que acontecem”. Ficam versões, visões.

O mineiro Fux, autor de Meshugá (2016), Brochadas: confissões sexuais de um jovem escritor (2015), Antiterapias (2012), conta que entrou na literatura “atrás das minhas próprias memórias, e memórias com restrições”. No livro publicado no ano passado, por exemplo, buscou explorar mitos sobre a “loucura” judaica. 

Com base em seu campo de conhecimento, lançou em 2011 Literatura e Matemática: Jorge Luis Borges, Georges Perec e o OuLiPo, uma versão de sua tese de mestrado. Autor de obras acadêmicas, ele considera a literatura “libertadora”, no sentido do estilo, da criação.

Malandragem

Ex-professor e durante muito tempo atuando na área de economia, Kucinski diz estar “muito feliz” por ter deixado o jornalismo. “Mudei até o nome (B.Kucinski, como passou a assinar)”, diz, afirmando sentir tristeza “de perceber que a malandragem virou valor fundamental no jornalismo brasileiro”. 

Ele lembra que começou na comunicação alternativa, ainda estudante da Universidade de São Paulo, escrevendo para operários. O regime autoritário impunha desafios, mas era um período estimulante. “Havia uma efervescência no mundo todo, e a gente vivia essa efervescência. Na comunidade jornalística, havia um sentimento de grande solidariedade entre nós frente à ditadura.”

Foi um período que causou “danos irreparáveis” à educação, lembra, com expulsão de professores das universidades. “Acho que esse dano se perdeu um pouco na história.” A uma pergunta da plateia do Tucarena, destaca a importância do Última Hora, que segundo ele “fez uma revolução no jornalismo convencional”, introduziu seções populares e “não se alinhava com o oligopólio conservador da mídia brasileira”. Aventa a possibilidade de uma das razões do golpe de 1964 ter sido acabar com a publicação.

Consumidor de literatura policial (lembra da revista Mistério Magazine, nos anos 1970), Kucinski foi para a ficção depois de deixar o governo Lula e de se aposentar compulsoriamente. “Surgiu um vazio”, lembra, dizendo estar hoje à procura de autores que “trabalhem mais a língua, o vernáculo”. Autor de K – Relato de uma Busca (2011) e Os Visitantes (2016), o agora escritor, que completa 80 anos neste 2017, conta estar prestes a lançar um livro. “Pesado”, adianta.

A conversa recai sobre o predomínio do digital na comunicação. Kucinski, com humor, conta ser “cada vez mais hostil” ao digital. Vindo dos tempos do linotipo, admite que essa “é a maior revolução de todos os tempos”. Usa o aplicativo WhatsApp quando é obrigado, mas concede: “Eu escrevo no computador”.

Laerte Coutinho lamenta que um jornal comunitário distribuído na favela São Remo, ao lado da USP, passe a ser só digital. “As pessoas não vão ver o jornal on-line”, diz. Mas a tecnologia também permite que ela possa simplesmente enviar suas tiras em vez de ir à redação, referindo-se à Folha de S. Paulo, para o qual colabora.

A cartunista também começou na comunicação alternativa, no início dos anos 1970. “A gente era consciente que tinha de superar obstáculos. Mas havia uma grande perspectiva pela frente”, lembra, vendo um ambiente opressivo nos tempos atuais, em que “movimentos de direita estão pululando” e atuando no campo da educação, da cultura e das artes. Conta que iniciou na profissão fazendo fanzines. “Até hoje é meio assim”, diz, rindo. As ideias se alimentam das próprias ideias, “fazem parte de um formigueiro de atividades”.

Lira: “Fui ludibriado”

Durante o debate no Tucarena, Lira Neto pediu licença para falar de um assunto que tem “me incomodado”, como explicou. Em fevereiro, ele foi procurado por uma produtora para dar uma entrevista destinada a um documentário sobre história do Brasil, no History Channel. “O que a produtora não avisou é que estavam coletando depoimentos para um série chamada Guia Politicamente Incorreto. Eu fui ludibriado”, afirmou, acrescentando que ele e outras pessoas estão exigindo a retirada de suas participações. “Estão fazendo um desserviço, de desinformação. Querem mexer com pessoas ainda marginalizadas.”

Há poucos dias, ele escreveu a respeito no Facebook: “Sinto-me violentado em fazer parte de qualquer produção que recorra à superficialidade e ao polemismo fácil. Neste momento em que se confunde jornalismo com entretenimento, bravata com reflexão, inconsistência com leveza, creio que seja necessário reafirmar o compromisso com a responsabilidade e o rigor da pesquisa histórica”. Na segunda-feira (23), contou ter falado com o diretor da série e entrevistador, “que enfim reconheceu o erro ético e, para remediar a barbaridade, comprometeu-se a retirar minha participação dos episódios, bem como eliminar qualquer menção a meu nome no material de divulgação”.