Problemas brasileiros

Reorganização da esquerda não pode ser apenas para vencer eleição

Professor e historiador Luiz Pericás, que acaba de lançar biografia política do intelectual Caio Prado Júnior, aponta limites de atuação no modelo atual e desafios a um efetivo desenvolvimento do Brasil

Segundo Pericás, elites sempre se aliam em momentos definidos, para defenestrar propostas de teor mais social

São Paulo – Caio Prado Júnior (1907-1990), intelectual brasileiro, ao receber o Prêmio Juca Pato cinco décadas atrás, por seu livro A Revolução Brasileira, afirmava em seu discurso de agradecimento que o Brasil não avançaria enquanto mantivesse “uma sociedade impulsionada unicamente pelo interesse privado e pelo lucro nos negócios, e estruturada na base da riqueza e da habilidade no manejo dos mesmos negócios”. Tampouco poderia pautar a discussão por “reformas ditadas por tecnocratas”, esquecendo-se dos “fatos sociais, humanos”. Pouco antes de receber o prêmio de 2015, na noite de ontem (6), o historiador Luiz Bernardo Pericás chamou a atenção para o descontentamento da sociedade com o sistema político e pela necessidade de aprofundamento da democracia “pela esquerda”, mas sem se limitar ao processo eleitoral. Ele ganhou o Juca Pato por lançar uma “biografia política” justamente de Caio Prado.

“No Brasil, dificilmente conseguiremos fazer mudanças profundas”, diz Pericás, professor de História Contemporânea da Universidade de São Paulo (USP). “A grande questão é se esse sistema representa efetivamente a massa brasileira. O presidencialismo de coalizão engessa projetos mais arrojados”, analisa. Para ele, o país passa por um momento de transição – e traumático, mais um em sua história de turbulências políticas e interrupções do processo democrático, em nova edição do que chama de triste padrão histórico. “As elites sempre se aliam em momentos definidos.” Para “defenestrar” propostas de teor mais social, acrescenta.

O autor de Caio Prado Júnior: uma biografia política (Editora Boitempo) acredita que é hora de “reaglutinação e reenergização” das forças de esquerda, processo que não pode se limitar a um plano para triunfar nas urnas. “Qualquer projeto agora tem de ser feito pensando em algo que não seja só eleição, ou você não ganha hegemonia. Você tem de pensar em mudar esse sistema. Você não replica modelos”, afirma Pericás, para quem Caio Prado Júnior provavelmente condenaria alianças com setores conservadores, dizendo que não se deve confiar na burguesia, que tem uma agenda própria.

Experiência histórica

Mas o partido político, como modelo, não pode ser demonizado, observa o historiador. “Ao mesmo tempo, os movimentos têm um papel importante”, lembra, procurando ponderar o papel do PT. “Nunca foi um partido revolucionário, se a gente quiser discutir estritamente nesse sentido”, afirma, para acrescentar que a legenda teve de conviver com o que se chama presidencialismo de coalizão. De outro modo, questiona, “será que eles permaneceriam no poder?”. “É possível tocar nos interesses dessa gente e sair ileso?” Segundo ele, ainda se referindo-se ao partido que esteve no poder nos últimos 13 anos, “você não pode desmerecer uma experiência histórica, que vem desde os anos 70”.

Em texto recente, publicado no Le Monde Diplomatique Brasil, o biógrafo observa que Caio Prado Júnior certamente se manifestaria contra “manobras e articulações que buscam levar adiante um processo arbitrário das elites brasileiras para assumir o poder e aplicar uma agenda ainda mais retrógrada”. O autor afirma que seu livro mostra um personagem diferente do que as pessoas estão acostumadas, “realmente envolvido nas lutas sociais de seu tempo”. “Muitas vezes o Caio é visto apenas como um intelectual que analisou o país. Ele estava à frente das lutas populares de sua época”. É preciso conhecimento para atuar na realidade, emenda.

E o problema não se limita ao Brasil, diz o professor. “Muita gente se encantou com Occupy Wall Street, Primavera Árabe, com essas experiências, Podemos, Syriza. Você precisa se organicidade, projeto político, programa, precisa de um norte.”

Em sua obra de 504 páginas, Pericás traz muito material inédito, fotos, cartazes, documentos da polícia política, recortes de jornais. Um fator familiar ajudou no acesso a parte desse acervo – Caio Prado é seu tio-bisavô. Isso provocou algum atraso no lançamento do livro, devido ao acesso constante a novos materiais, como a descoberta, por um primo, de uma pasta com documentos da prisão ocorrida em 1970.

A obra também se mostra oportuna pelo momento político, pelo abandono de políticas sociais e implementação de modelos delineados pelo mercado financeiro. Pericás espera que o livro ajude na reflexão, fazendo críticas também ao mundo acadêmico, que estaria “contaminado” por critérios de avaliação para fortalecer currículos. “Os intelectuais têm de ser mais ativos”, diz, identificando certa pobreza no atual pensamento brasileiro. “Quem são os grandes intelectuais hoje? Não vou nem dizer os nomes”, afirma o historiador, fazendo menção a alguém “de dedo em riste, olhando para a câmara e xingando todo mundo”.

No discurso de premiação, o presidente da União Brasileira de Escritores (UBE), Durval de Noronha Goyos, afirmou que o Brasil acaba de passar por um “golpe de Estado parlamentar e judiciário”. Com isso, “foi apeada a presidente da República democraticamente eleita”, levando ao poder “um governo ilegítimo, sem um mandato popular, sem uma plataforma política de ação aprovada pelo povo através de eleições”.

O Prêmio Juca Pato é concedido pela UBE desde 1962, tendo como primeiro vencedor o chanceler San Tiago Dantas. Entre outros ganhadores, estão Érico Verissimo, Jorge Amado, Afonso Arinos, Juscelino Kubitschek, Câmara Cascudo, Sérgio Buarque de Holanda, Carlos Drummond de Andre, Cora Coralina, Fernando Henrique Cardoso, Antônio Callado, Barbosa Lima Sobrinho, Dom Paulo Evaristo Arns, Rachel de Queiroz, Antônio Cândito e Lygia Fagundes Telles. No ano passado, ganhou o economista Luiz Carlos Bresser-Pereira.