Núcleo de dança da zona sul de SP ensina a arte da multiplicação da cidadania
Bailarinos do Pélagos, em Campo Limpo, mostram a jovens da periferia como criar, cultivar e propagar dignidade e altivez
Publicado 08/03/2015 - 13h01
Rubens com os corpos cidadãos dançantes da zona sul paulistana: aprendizado em movimento
São Paulo – Rubens de Oliveira Martins tem uma agenda e tanto. Com quase 15 de seus 29 anos dedicados à dança, é coreógrafo e diretor dos grupos Chega de Saudade e Gumboot Dance Brasil, do qual também é bailarino – e trabalha como professor em uma escola particular na zona oeste da capital paulista. Mas é na zona sul que estão suas raízes e seu maior orgulho. O Núcleo de Dança Pélagos, que criou em 2010 em parceria com a ONG Arrastão, é onde promove a multiplicação de corpos cidadãos dançantes. E replica sua história, que começou ali mesmo.
Filho e irmão de músicos amadores, Rubens se inscreveu no curso de percussão do Arrastão e logo sua intimidade com a linguagem artística o promoveu a monitor assistente. Foi a porta de entrada para o projeto Dança Comunidade, que o coreógrafo e bailarino Ivaldo Bertazzo abriu para jovens voluntários ou atendidos por organizações da periferia, em 2003. Não demorou para que ele começasse a ensinar o que aprendia a outros jovens de comunidades, tanto dentro da Escola de Reeducação do Movimento Ivaldo Bertazzo como no Campo Limpo, no mesmo lugar onde havia começado.
Rubens trabalhava intensamente na companhia de Ivaldo, mas reservava seu único dia de folga, as segundas-feiras, para ir ao Arrastão. “Eu via as crianças e os jovens que acompanhavam meu processo com muita vontade de aprender. Eles viam matérias na TV, nas revistas, e queriam saber o que era. Daí o próprio Arrastão me convidou para dar aula, conta.
Quando saiu da companhia, em 2009, o dançarino propôs à ONG um projeto pontual de oficinas para os jovens do Campo Limpo. Assim nascia o Núcleo de Dança Pélagos. No ano seguinte, estreava seu primeiro espetáculo, Volúpia. “Foi muito especial. Tentei recuperar no meu corpo e na minha cabeça a experiência que eu tive em 2003. Refleti sobre como comecei e como estava ali. Tentei trazer na memória corporal qual é o início de tudo em um trabalho com um jovem que passa pelo momento mais importante da vida, que é a adolescência. Eles viviam intensamente cada segundo”, lembra.
Segundo Rubens, o objetivo principal do núcleo é fazer com que a dança seja uma ferramenta de formação e de autoconhecimento. “O Pélagos tem um projeto de dança que leva os jovens atendidos ao palco com um espetáculo, mas não só isso. A ideia é que no momento mais difícil da vida, que é essa transição da adolescência para a vida adulta, eles tenham um autoconhecimento, equilíbrio, e aprendam a lidar com os desafios da vida adulta”, afirma. Os integrantes do grupo têm fisioterapia, aulas de danças brasileiras, balé clássico, dança contemporânea, capoeira e aulas teóricas sobre história da dança, empreendedorismo, planejamento de carreira, nutrição, sexualidade. Além do aprendizado, os alunos recebem uma bolsa-auxílio.
“Tudo isso faz com ele entenda quem ele é nessa comunidade, para que possa levar sua comunidade para onde for”, diz o professor. “Eu percebi que era também um arte-educador. Diariamente, eles vinham com questões sobre a família, pessoais, físicas e emocionais para as quais eu tinha de dar um suporte, dar segurança.” Aprendeu e ensinou. Em 2015, a previsão é que os alunos mais antigos do núcleo comecem a dar aula em um projeto em São José dos Campos, no interior paulista, em parceria com a prefeitura.
Bons exemplos
Muitos alunos já começaram a replicar seus conhecimentos. Renan Marangoni, de 19 anos, entrou no grupo em 2011. Dá aulas no Movimento Comunitário Estrela Nova, no Campo Limpo, e até formou seu próprio grupo, o Corpo Molde, que estreou com o espetáculo Saga Tiba em novembro do passado. “Muitas coisas que aprendi no Pélagos eu levo para o Corpo Molde e para o Estrela Nova. Vejo o Pélagos como um dos disparadores para que eu começasse a criar. Ganhei mais segurança, mais estrutura, mais base para poder estabelecer aulas em outros lugares, criar meu próprio grupo, dar oficinas… Não é só você ir lá e ensinar o passo. É o seu papel de educador, é todo um processo: você tem de entender o seu corpo para poder dançar”, declara Renan, aluno do Pélagos e professor de cerca de 70 crianças e jovens do Estrela Nova.
Está seguindo o mesmo caminho de Rubens? “Não é a mesma coisa porque nós somos diferentes, mas o olhar dele para a dança me traz muitas referências. O meu sonho é criar essa possibilidade de mais pessoas poderem vivenciar a dança”, afirma Renan, cujos alunos também já começaram a promover oficinas. “Eu vejo que esses jovens estão fazendo diferença na comunidade.”
Liliane Rodrigues entrou no Núcleo Pélagos em junho de 2013, aos 19 anos, depois de ter participado do projeto Jovens Urbanos e ter feito curso de mediação de leitura, de multiplicadora e de comunicação. Convidada por um professor a assistir o segundo espetáculo do núcleo, Garimpo, a jovem ficou encantada e não demorou muito para que fizesse parte do grupo. “Percebo a minha evolução como dançarina e também na minha formação, porque o Pélagos não forma só bailarinos, tem várias outras coisas.”
Liliane pretende fazer curso técnico, faculdade e dar aula de dança. “O Rubens dá essa oportunidade para a gente, de sair, dar oficinas, vivências. É uma forma de passar adiante o que a gente aprendeu. Eu participo de um grupo de dança urbana no Grajaú (bairro da zona sul) e acabo dividindo com eles muita coisa do que eu aprendo. E é isso que me faz trabalhar.”
A inclusão é ali
Lucas Saraiva não faz parte do Pélagos, mas entrou no projeto Cidadança, de Ivaldo Bertazzo, por indicação de Rubens, em 2007. “Ele começou no Cidadança e eu e a equipe toda trabalhamos muito nele. Depois de um tempo, ele me falou que seu sonho era entrar no Grupo Corpo. Depois do Cidadança, o Ivaldo o contratou para a companhia. Para mim, foi um prazer ter trazido esse menino do Arrastão, ter participado da sua formação e tê-lo dançando ao meu lado”, lembra Rubens.
Depois de ter viajado o mundo como bailarino, Lucas teve seu sonho realizado – já completou um ano no Grupo Corpo, de Belo Horizonte. “Sempre quis dançar nessa companhia. Estou realizando um sonho que me estimula a sonhar cada vez mais. Projetos desse tipo têm uma importância sem tamanho. É uma forma de você poder dar para esses jovens uma esperança de que pode dar certo e que eles podem ser felizes”, acredita. Mesmo que muitas vezes eles nem imaginem o tamanho do mundo que os espera. “Treinar esses jovens a sonhar é dar ferramentas e discernimento para que possam evoluir seus talentos e realizá-los. Não é preciso formar bailarinos, mas formar grandes pessoas, grandes humanos que possam fazer diferença no futuro.”
A dança é o que move esses meninos e meninas bailarinos e arte-educadores. Eles são o orgulho de Rubão, o espelho, professor e paizão. “Eu acho errôneo falar sobre ‘incluir esse jovem da comunidade’. Ele já está incluído faz tempo. É que existe uma sociedade paralela que não é conhecida, que é a nossa periferia. É lógico que é importante saber a história do Masp, mas também existe um grande repertório cultural na comunidade. Esse jovem também circula por esses lugares onde a cada esquina tem um sarau, uma exposição de artistas locais, um show… Está sendo construída na periferia uma maneira de viver dessa arte.”
Rubens afirma que a arte é apenas uma ferramenta para que esse jovem reconheça seu poder. “Eles têm voz e entendimento; um entendimento que nasceu na periferia. Esse jovem começa a entender, na arte, o poder que ele tem e que é dele.” É sobre isso o terceiro e mais recente espetáculo do Pélagos, Y Khyssa, que significa “o que é meu”, no dialeto Yathê, da tribo indígena Fulni-ô, de Pernambuco. O espetáculo foi apresentado no final de novembro na 31ª Bienal de Artes, em São Paulo, e é tema de um documentário que os próprios alunos do Projeto Arrastão estão fazendo.
Fome de vida
Professor de dança em uma escola de classe média em Perdizes, Rubens diz que o “corpo periférico” tem suas especificidades. “Esse corpo do jovem da periferia tem fome de vida. Tudo o que ele faz, ele faz com muita fome, é um corpo que anda a pé, pega ônibus, arruma a casa, leva o irmão mais novo na escola, carrega uma mochila durante quilômetros para chegar até a escola, joga bola, vive a rua… E esse corpo acaba apresentando muitas possibilidades. Somos um corpo marcado por histórias boas e ruins.”
Além de talento e bagagem acumulados, o pertencimento parece fascinar esses 30 jovens do Núcleo Pélagos. “Eu me vejo diariamente nesses meninos, a cada dificuldade que eles têm, porque são as mesmas que as minhas. Já me perguntaram: ‘Rubens, você já dançou no Ivaldo, já conhece tanta gente importante, já viajou o mundo, por que está voltando para lá?’”. Depois de um suspiro emocionado, ele mesmo responde: “Eu não estou voltando. Simplesmente, eu nunca saí de lá”.
O reconhecimento vem também de Ivaldo Bertazzo. “Ele possui familiaridade com nossas tradições, é um homem forte, com expressões fortes. É bom vê-lo seguindo os mesmos propósitos que tanto perseveramos nessas últimas quatro décadas. Desenha-se com muita nitidez que ele preencherá um grande espaço na linguagem da dança, unindo diferentes biotipos e classes sociais. É uma honra lembrá-lo como ex-aluno e parceiro”, diz Ivaldo.