Músicos da vanguarda paulistana cantam ‘poetas trágicos’ da MPB

Arrigo Barnabé, Luiz Tatit, Ná Ozzetti e Renato Braz lembram Assis Valente e Nelson Cavaquinho, que fariam 100 anos em 2011

Tatit, Ná, Arrigo e Renato lembram sambas clássicos (Foto: Divulgação/ Matthias Fenkes/ Sesc Pompeia)

São Paulo – Assis Valente e Nelson Cavaquinho são dois “poetas trágicos” da música brasileira. O primeiro compôs o hino informal do Natal brasileiro, “Boas Festas”, gravado nos anos 1930 por Carlos Galhardo, e já revelando uma faceta de melancolia entre pitadas de alegria. O outro fez da morte, ou da proximidade da morte, um de seus temas recorrentes. E um de seus versos, da canção “Rugas”, dá nome ao show que será realizado neste fim de semana, em São Paulo, para lembrar os centenários dos compositores: “Feliz é aquele que sabe sofrer”.

“O verso é como que uma síntese da obra de Nelson Cavaquinho, mas ninguém estranharia se tivesse sido escrito por Assis Valente”, comenta a radialista Teca Lima, que idealizou o show. Serão três noites no Sesc Pompeia, na zona oeste paulista, desta sexta-feira (25) até domingo (27), em que Arrigo Barnabé, Ná Ozzetti e Renato Braz subirão ao palco – juntos ou não – para interpretar sambas da dupla. Durante a apresentação, Luiz Tatit vai comentar a vida e a obra de Assis e Nelson.

O baiano Assis Valente chegou ao Rio de Janeiro no final dos anos 1920, ainda adolescente. Nas duas décadas seguintes, acumularia sucessos, alguns deles na voz de Carmem Miranda, como “Camisa Listrada” (1937), que cantoras como Nara Leão, Maria Bethânia e Marília Medalha gravariam posteriormente. Era um deboche dos bacanas que se “liberavam” no carnaval:

Vestiu uma camisa listrada
E saiu por aí
Em vez de tomar chá com torrada
Ele tomou Parati
Levava um canivete no cinto
E um pandeiro na mão
E sorria quando o povo dizia
Sossega leão, sossega leão

Cronista, compôs pérolas como “Recenseamento” (E o agente recenseador/ Esmiuçou a minha vida que foi um horror) e “O Mundo não se Acabou” (Acreditei nessa conversa mole/ Pensei que o mundo ia acabar/ E fui tratando de me despedir/ E sem demora fui tratando de aproveitar/ Beijei na boca de quem não devia/ Peguei na mão de quem não conhecia/ Dancei um samba em traje de maiô/ E o tal do mundo não se acabou). Ambas foram gravadas por Carmem Miranda.

A Pequena Notável, no entanto, desdenhou “Brasil Pandeiro”, que acabou gravado pelos Anjos do Inferno (1941) e redescoberto, com furor, pelos Novos Baianos em 1972. Um sucesso que ele não pôde testemunhar: em sua terceira tentativa de suicídio, morreu em 10 de março de 1958 (nove dias antes de completar 47 anos), perto de um parque de diversões. “Ouso dizer que este samba está para a cultura popular da nossa terra como ‘Os Lusíadas’ para a grande literatura portuguesa”, escreveu certa vez Ary Vasconcelos, pesquisador de música brasileira.

Foi Assis Valente que constatou: Minha gente/ Era triste, amargurada/ Inventou a batucada/ Pra deixar de padecer/ Salve o prazer, salve o prazer.

O carioca da Tijuca (bairro da zona norte) Nelson Antonio da Silva não tentou pôr fim à vida, mas fez da morte e da desilusão amorosa temas constantes em sua obra. O que pode se constatar em versos como Tire o seu sorriso do caminho/ Que eu quero passar com a minha dor (“A Flor e o Espinho”) ou A luz negra de um destino cruel/ Ilumina um teatro sem cor/ Onde estou desempenhando o papel/ De palhaço do amor (“Luz Negra”). Ou, explicitamente, em “Eu e as Flores”: Quando eu passo/ Perto das flores/ Quase elas dizem assim:/ Vai que amanhã enfeitaremos o seu fim.

Mas também guardou algum espaço para a esperança: O sol há de brilhar mais uma vez/ A luz há de chegar aos corações/ Do mal será queimada a semente/ O amor será eterno novamente (“Juízo Final”). E para pedir reconhecimento antes de partir (“Quando eu me chamar Saudade”):

Me dê as flores em vida
O carinho, a mão amiga,
Para aliviar meus ais
Depois que eu me chamar saudade
Não preciso de vaidade
Quero preces e nada mais

Ainda criança, foi morar na Lapa, na região central do Rio de Janeiro, com os pais – ele, componente da banda da Polícia Militar e tocador de tuba; ela, lavadeira. Circulou por bairros do subúrbio, alimentou-se de boemia. E fixou residência no Morro da Mangueira, na zona sul, já nos anos 1950. Muitos anos antes, quando era policial, patrulhava a área, e ali fez amizade com sambistas como Carlos Cachaça e Cartola. A história que se conta é que, certa noite, ficou de prosa com Cartola durante tanto tempo que seu cavalo voltou sozinho para o batalhão – o que rendeu uma entre várias detenções. “Eu ia tantas vezes em cana que estava até acostumado”, contou Nelson Cavaquinho, que aproveitava o “tempo livre” para compor.

Ele também costumava contar a história de um sonho no qual morria às 3h da madrugada. Acordou assustado, viu que o horário estava próximo, e não teve dúvida: recuou o ponteiro do relógio. Morreu bem depois, de enfisema pulmonar em 18 de fevereiro de 1986, aos 74 anos, de madrugada, enquanto dormia. A sua companheira só constatou a morte pela manhã. Chovia forte quando foi enterrado. Dias antes, sua escola ganharia o carnaval com um samba sobre Dorival Caymmi. Neste ano, o homenageado foi o próprio Nelson Cavaquinho, “o filho fiel”, e a Mangueira terminou em terceiro lugar.

Show Feliz é Aquele que Sabe Sofrer

Com Arrigo Barnabé, Ná Ozzetti, Renato Braz e Luiz Tatit
Sexta (25) e sábado (26), às 21 horas
Domingo (27), às 19 horas
Teatro do Sesc Pompeia (Rua Clélia, 93, São Paulo)
Telefone: 3871-7700
Ingressos: R$ 20 (inteira), R$ 10 (usuário matriculado no Sesc e dependentes, pessoas com mais de 60 anos, professores da rede público e estudantes com comporovante) e R$ 5 (trabalhador no comércio e matriculado no Sesc e dependentes)

 

Leia também

Últimas notícias