Descompasso entre políticas de habitação e realidade de Recife está em documentário ‘Avenida Brasília Formosa’

Longa de Gabriel Mascaro é um dos destaques da 14° Mostra de Cinema de Tiradentes

(Foto: Divulgação)

Tiradentes (MG) – Um dos destaques na 14° Mostra de Cinema de Tiradentes foi sem dúvida o longa Avenida Brasília Formosa, do pernambucano, Gabriel Mascaro. Embora não tenha levado nenhum troféu barroco, é uma síntese das preocupações do evento.

Com o mote das inquietações políticas do cinema brasileiro, tema da mostra, o filme, já exibido em Buenos Aires, Roterdã e Munique, escancara a distância entre as boas intenções na remoção de famílias em áreas de risco e as perdas emocionais, culturais e econômicas sofridas pela população. Na outra ponta, os ganhos de especuladores imobiliários e as mudanças no perfil da cidade de Recife (PE).

Em um misto de documentário e ficção, divisões com as quais o diretor não concorda plenamente, Avenida Brasília Formosa cruza as vidas de Fábio, Débora, Pirambu e do pequeno Cauan, prestes a completar seus cinco anos. Mais que um espaço geográfico, a avenida – e a famosa favela, Brasília Teimosa, visitada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva logo no início de seu mandato em 2003 – é o cenário onde se encontram os sonhos e os desejos dos personagens. “Essa noção espacial, essa cartografia, está em bases tênues. É como se fosse riscada com um giz e que irá desaparecer na própria interação das pessoas”, diz Gabriel Mascaro.

Brasília Teimosa é um antigo bairro à beira-mar localizado na região central de Recife. Área cobiçada da cidade; nobre mas degradada. Até 2001, abrigava um conjunto de casas sobre palafitas que invadiam o mar. Pescadores, biscateiros, donas de casa, gente simples habitavam moradias que eram invadidas pelas violentas ondas.

Parte da população foi, então, transferida para a Vila Cordeiro, conjunto residencial na periferia da cidade. É para lá que vai Pirambu, pescador que agora tem que pedalar 20 quilômetros para chegar até seu barco. Longe do mar, ele e a família passam a conviver com cavalos e vacas que pastam em áreas próximas ao condomínio.

Na área aberta após a remoção é construída a Avenida Brasília Formosa, logo ocupada por prédios de luxo com seus muros altos e segurança reforçada. O que antes era considerado uma área de risco transforma-se no novo objeto de desejo dos endinheirados. “Brasília Teimosa sempre foi um bairro de resistência. Mais que a abertura da avenida, rebatizá-la de Formosa – por parte do governo – demonstra a vontade de recriar o espaço urbano em outras bases”, afirma Mascaro.

O espaço urbano foi tema do outro documentário dirigido por Mascaro, Por um lugar ao sol. Filmando famílias donas de coberturas em Recife, Rio de Janeiro e São Paulo fez um filme que mostra a arrogância, o desrespeito e a empáfia dos moradores. A crítica foi dura e o acusou de “apontar uma arma” para seus personagens, enganando-os, pois todos pensavam que o resultado final seria uma apologia aos bem-nascidos.

“O engraçado é que quando eu entrei no espaço dos poderosos, disseram que eu invadi suas intimidades. Agora que os personagens são pobres – e eu também ocupo suas casas, suas vidas com microfones e câmeras – as pessoas apenas riem de algumas situações aparentemente engraçadas. Então a crítica que fizeram é uma crítica de classes. Não pode incomodar os ricos”, conclui.

Personagens reais

A trama retratada em Avenida Brasília Formosa, mostra o cotidiano comum em que se cruzam os quatro personagens. Entre eles, Fábio, que trabalha em um restaurante e complementa sua renda fotografando os eventos do bairro e Débora, uma manicure que contrata o rapaz para gravar um videobook e arriscar uma vaga no reality show BBB, da TV Globo. De quebra ele precisa ainda filmar o aniversário de cinco anos do menino Cauan, filho da jovem, e fã incondicional do Homem Aranha.

Na vida real, nada muito diferente. Fábio na verdade é Fábio Gomes, ex-funcionário de restaurante, bolsista em balé clássico e um cinegrafista de eventos, que é, ao mesmo tempo, um animador da festa. Em seu trabalho situações semelhantes a que vive seu personagem ao produzir o filme-propaganda feito para Débora. Poses na praia, danças em festas, momentos de desconcentração registrados para garantir a vaga no BBB.

De tanto correr com sua câmera para cima e para baixo, pessoas da comunidade acharam que era ele o diretor do filme, conta Fábio. “Isso até aumentou o número de convites para filmar eventos”, diz sorrindo.

Todo o filme é feito com atores não profissionais residentes em Brasília Teimosa e arredores – caso de Fábio, que mora em um bairro vizinho. Foram convidados para interpretar suas próprias vidas. O que é verdade, o que é ficção? Difícil distinguir, mas pouco importa.

Antes de ser um filme de personagens, Avenida Brasília Formosa é um filme sobre políticas públicas de planejamento urbano e o seu desencontro com os sonhos e desejos dos moradores. “Não posso restringir a discussão entre ser documentário ou ficção. Parto do pressuposto de que não estou filmando a vida, o mundo. O mundo não está pronto para ser filmado. O que quero é criar um estado filmável do mundo. Para isso vou usar procedimentos técnicos, estéticos e políticos”, diz Mascaro.

Manifesto e premiados

Com pouco mais de 5 mil habitantes e sem nenhuma sala de cinema, a histórica Tiradentes foi a sede do festival que abriu o calendário audiovisual brasileiro de 2011. A 14º Mostra de Tiradentes, realizada entre 21 e 29 de janeiro, apresentou 134 filmes nacionais em 49 exibições gratuitas.

No final da mostra, aproveitando o gancho do tema político do evento, um grupo de profissionais apresentaram um manifesto com propostas de políticas para o setor. Lida pelos atores João Miguel e Irandhir Santos, a Carta de Tiradentes, ressalta cinco pontos considerados fundamentais pelo grupo. Entre eles, a criação de linhas específicas de fomento para formatos de produção de inovação técnica, artística, com orçamentos de menor porte e fomento a distribuição e exibição de produções de baixo orçamento.

Entre os premiados, o grande vencedor foi Os Residentes, de Tiago Mata Machado, melhor filme na opinião do júri jovem e da crítica. Inspirado no francês Jean-Luc Godard e com a pretensão de oxigenar o cinema brasileiro, segundo afirmou o próprio diretor, o longa teve sua primeira exibição cercada de polêmica durante o último Festival de Cinema de Brasília.

Sua mescla complexa de referências literárias e artísticas parece enfim ter sido compreendida. Além do Troféu Barroco, em Tiradentes, o filme foi selecionado para o Festival de Berlim, que começa no próximo dia 10. Para o júri popular, o melhor filme foi o documentário Solidão e Fé, de Tatiana Lohmann, sobre o universo masculino dos rodeios.

Assista ao trailer