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Bebida antiga

O novo e o velho mundo: uma viagem pela história do vinho

Por muito tempo, o reinado do velho mundo foi inabalável no mundo do vinho. Até que o novo mundo aprendeu a dominar a técnica de produção da bebida

Pixabay
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O vinho é uma bebida muito antiga. Escavações arqueológicas indicam que sua história tem mais de 8 mil anos, no período neolítico, lá pelos tempos quando nasceu a agricultura. Porém, o vinho é ainda alguns milhares de anos mais jovem que a cerveja. Além da matéria-prima, as duas bebidas sempre demarcaram as diferenças de classes. Enquanto a primeira foi sempre uma bebida da burguesia, a segunda era o néctar da classe trabalhadora.

Contudo, o objetivo das duas era o mesmo: a embriaguez e, no caso da cerveja, o tônico para suportar o trabalho duro. Tem até uma piada no meio enológico que diz” “É necessário muita cerveja para produzir uma garrafa de vinho”. O que dá o tom do quão extenuante é fazer vinho. 

Como se vê, não é só em 2020 que o planeta Terra é um lugar duro para viver. Desde sempre, o homem precisa de algum aditivo que o anestesie contra os males do mundo.

A origem

O jornalista e crítico de vinho inglês Hugh Johnson escreveu há alguns anos o livro A História do Vinho, considerado até hoje a bíblia da bebida.  Na obra, ele conta que a Geórgia, no sul do Cáucaso, Europa Oriental, é o berço do nascimento do vinho.

Nesse país que tem Rússia, Armênia, Azerbaijão e Turquia como vizinhos, foram encontrados resíduos de cerâmicas neolíticas que demonstram: a bebida foi inventada mil anos antes do que se imaginava.

A descoberta foi publicada na revista científica Proceedings of the National Academy of Sciences of United States of America, em 2017 (para quem quer arriscar-se no inglês, o arquivo está neste link). O livro de Johnson, no entanto, é anterior a isso.

Segundo os pesquisadores, foi nessa região que a videira – uma planta trepadeira sem limites que, se não for podada, vai crescendo, crescendo e crescendo em folhas – foi domesticada. Eles arriscam dizer que foi na Geórgia que a vitivinicultura tenha nascido.

Johnson também afirma, em seu catatau sobre a história do vinho, que há indícios de que Noé, aquele mesmo, o da arca, já havia garantido a sua dose de vinho para suportar o dilúvio (será que o vinho ajudou Noé a viver 950 anos?).

O autor também conta que Noé encheu a cara e dormiu completamente nu, até que foi encontrado por um de seus filhos, o qual foi posteriormente amaldiçoado pelo pai (não se podia ver ninguém pelado naquele tempo).

Enfim, o que importa dessa história é que não foram só animais e espécies que tiveram sua vida garantida para a posteridade. Noé também garantiu vida longa ao vinho. Até que ele virasse o sangue de Cristo centenas de anos depois.

Opa, isso é legal

A história do vinho conta que, como muita coisa na vida, a fermentação foi obra do acaso. Diz-se que foi espontânea, como a fermentação natural muito em moda hoje na panificação (também no vinho, mas isso será tema de uma próxima coluna).

Afinal, as leveduras que transformam o açúcar da uva em álcool só precisam de comidinha (glicose e outros açúcares fermentescíveis) e calor. O propósito delas é produzir a energia de que precisam para se reproduzir e garantir a sobrevivência da espécie. Ou seja, elas não dão a mínima se queremos beber ou não vinho. Elas só querem viver. Mas o subproduto desse ciclo das leveduras é o álcool, que vai matá-las depois. Então, elas morrem e nós bebemos o sangue delas.

Em suma, o vinho nasceu quando alguém largou a uva em algum lugar e ela fermentou pela ação espontânea de leveduras. Depois de algum tempo, esse mesmo alguém ou outro foi lá, bebeu e falou: “ôpa, isso aqui é legal!”. Pronto, estava criado o elixir da vida louca.

Idade Média e Revolução Industrial

Na Antiguidade, os vinhos eram armazenados em vasilhames de couro, cerâmicas ou ânforas de barro.

Ao longo do tempo, a bebida foi sendo aprimorada. Os egípcios, há uns 5 mil anos, foram experts na produção de vinho. Praticamente o que vemos hoje tem um dedo deles. A fermentação já era feita nos tanques onde as uvas eram pisadas. Os romanos inventaram as barricas, que tinham o propósito de transportar a bebida.  

Pulando muitos anos da história do vinho, foi no final da Idade Média, lá pelo século 15, quando houve o aumento da produção de bens de consumo, que as garrafas passaram a ser usadas para transportar a bebida das barricas até as mesas.

Mas foi só na Revolução Industrial, a partir da segunda metade do século 18, que a produção de garrafas passou a ser aprimorada nos moldes como as conhecemos hoje pelas mãos dos ingleses. Vamos dizer que foi nessa época que o vinho ganhou escala comercial.

Velho Mundo Ocidental

Como se vê, a uva é uma fruta ancestral e foi passeando pelo mundo até fincar raízes no lado ocidental da Europa. França e Itália disputam o protagonismo na produção de vinho fino. Como eu já falei em várias colunas aqui, a uva usada na produção de vinho fino é da espécie Vitis vinifera, que é distinta da espécie usada para fazer sucos, uva para comer e vinho de mesa.

Mas os franceses acabaram levando a melhor fama pois são muito bons na questão da ordenação dos protocolos de técnicas de produção (eles fizeram o mesmo com a gastronomia).

No fim das contas, muitas das uvas autóctones da França acabaram ganhando o mundo. Aqui no Brasil, algumas localidades, como Santa Catarina, também têm investido na produção de vinhos com variedades originárias da Itália. Espanha, Portugal e outros tantos países também têm castas próprias. Mas foram as uvas francesas que ultrapassaram as fronteiras, ganhando países até então não tradicionais na produção de vinho, como o Brasil.

Todo mundo conhece Cabernet Sauvignon, Cabernet Franc, Sauvignon Blanc, Syrah (ou Shiraz na Austrália), entre outras. Todas elas têm berço francês, mas acabaram se dando bem em outros solos.

Julgamento de Paris

Se você chegou até aqui, deve ter entendido que, quando falamos de velho mundo na história do vinho estamos falando de Europa. Todo o resto é novo mundo, incluindo Austrália, Nova Zelândia, Estados Unidos, Chile e Brasil. Enfim, todos os outros são novo mundo, alguns mais outros menos.

Apesar disso, a gente não pode dizer que o reinado da Europa esteja abalado (por enquanto), uma vez que ainda estão entre os maiores produtores e consumidores de vinho do mundo. Mas, desde a década de 1970, muita água rolou nesse mercado.

O ponto de inflexão ocorreu em 1976, naquele que ficou conhecido como o Julgamento de Paris, que virou filme em 2008, estrelado por Alan Rickman e Chris Pine. A obra acompanha o início da indústria do vinho em Napa Valley, na Califórnia (Estados Unidos).

Não vou contar aqui o longa (ele está disponível no YouTube), mas o Julgamento de Paris foi uma degustação às cegas feita com vinhos franceses e americanos, em 1976, que resultou na vitória de uma vinícola californiana (pronto, dei spoiler!). Ou seja, a hegemonia francesa ficou abalada.

Tanto que o Nappa Valley virou uma das regiões mais proeminentes na produção de vinho fino do mundo.

O fator China

Se os americanos já causavam incômodo (o país está entre os maiores produtores/consumidores de vinho do mundo), imagine quando a China decide entrar na história do vinho. E, como tudo o que acontece naquele país, os chineses estão entrando com tudo.

Lá, diferentemente da maioria das localidades, o setor de produção de vinho é dominado por mulheres, que foram estudar fora, principalmente na França. Ou seja, foram beber da melhor fonte e aprender a língua para fazer negócios.

A China já produziu vinhos premiados em concursos internacionais, tem gente rica para consumir o que produzem mas, a exemplo do Brasil, também enfrenta resistência da própria população, que não confia nos produtos locais.

Ainda assim, a China vem ganhando o mundo. Essa história pode ser vista na série Rotten (Podre ou Estragado, em inglês), no episódio O Reinado do Terroir. Disponível na Netflix, mostra o quanto esse país gigante vem mexendo, não só com a geopolítica mundial, mas com o mercado de vinho. A ameaça é real.


Adriana Cardoso é jornalista com mais de 20 anos de estrada, além de enóloga formada pelo Instituto Federal de Ciência, Educação e Tecnologia de São Paulo, campus São Roque. Fez estágio na Villa Francioni, vinícola localizada na região conhecida como Vinhos de Altitude, na Serra Catarinense, e hoje aventura-se a escrever e falar sobre vinhos, além de dar consultoria em comunicação para vinícolas e outros negócios do vinho. Acompanhe também o podcast Taninos e Afins nas plataformas Anchor, Breakers, Google Podcasts, Pocket Casts, RadioPublic e Spotify.