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Sede de quê

Um bom vinho pede uma boa água. E, sim, nós a temos

Se não soubermos valorizar a água que temos, chineses vão chegar aqui comprando tudo. Quanto antes valorizarmos o nosso bem – e pararmos de “tirar onda” com água importada –, melhor

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Quando se trata de degustação de vinhos, a água é companhia necessária, não só para limpar o palato e ajudar a diluir o álcool consumido, mas também para melhorar a percepção sensorial da bebida. Mas, conforme afirma o sommelier de água Rodrigo Rezende, 38 anos, nem toda água é igual. “Se você prova com o vinho uma água da torneira com muito cloro, você mata o vinho. Do mesmo modo, se você prova um vinho branco, jovem, aromático com uma água de maior mineralidade, você corta todo o aroma e sabor dele”, alerta. Rezende é um dos poucos sommeliers de água certificados no Brasil. O berço da formação é a Alemanha, país que começou a estudar a água mais a fundo para aprimorar a indústria cervejeira.

No mundo, há seis escolas de formação de sommeliers de água, em países como Estados Unidos (onde Rezende estudou), Coreia do Sul, China, Itália e Alemanha (duas). No Brasil, a profissão ainda é incipiente, o que, segundo Rezende, é um desperdício. Isso porque o país conta com cerca de mil fontes de água mineral. Confira a entrevista concedida por Rodrigo Rezende à coluna, por telefone.

Interesse pela água

Como começou o seu interesse pela água?

Sou formado em publicidade e este ainda é o meu ganha pão. No passado, tive uma choperia em Minas Gerais e sempre gostei de degustar vinhos. Fiz um curso iniciante de sommelier na Casa Rio Verde, em 2010 (hoje a Casa é também um e-commerce), e o WSET (nível 2). Há seis anos, fui contratado por uma empresa de água mineral para desenvolver o marketing e, ao fazer o benchmarking (conhecer o produto da concorrência), vi que muita gente ficava falando que a água dela era melhor, porque tinha o PH maior, o melhor sódio e por aí vai. Descobri que a água é um produto complexo, que tem seu terroir, DNA. Não existe uma água igual à outra. Por isso, fui me aprofundando.

A partir daí, como foi sua busca pela certificação de sommelier de água?

Pensei: ‘se existe curso de sommelier do vinho, de cerveja (que estava começando), deve ter um para água’. Fui procurar e descobri que tinha uma escola na Alemanha, a Doemens, mas o curso era em alemão. Nas redes sociais, eu já seguia o alemão Martin Riese, que tinha um visto ‘O’, destinado a pessoas com habilidades extraordinárias (sommelier de água) e o americano Michael Mascha, autor de um livro que é a bíblia da água (‘Fine Waters: a Connoisseur’s Guide to the World’s Most Distinctive Bottled Waters’, ainda não traduzido para o Português). Eles se juntaram em 2018 e fundaram a Fine Waters Academy, com cursos em inglês e aí eu falei: ‘agora eu consigo’. Eu fiz um curso online de três meses.

Critérios de avaliação

O que o curso desvelou para você sobre o universo da água?

Eu já havia aprendido estudando sozinho que a água tem terroir, tem perfil, ou seja, características que são dela, que chamamos de TDS – Total de Sólidos Dissolvidos, do inglês ou, como a gente chama no Brasil, o Resíduo de Evaporação, que é discriminado no rótulo da garrafa. É a quantidade de TDS influi no sabor da água e, quanto maior ele for, maior a mineralidade da água. E o que é a mineralidade? É, literalmente, a presença de minerais como sódio, magnésio, cálcio, bicarbonato, entre outros, que vão dar o sabor.

No universo do vinho, são usados alguns critérios de avaliação, como cor, aroma, gosto… Quais são os critérios avaliados na água?

Nos meus cursos e oficinas (ele é professor de uma disciplina sobre água no curso de vinho da ABS – Associação Brasileira de Sommeliers – de Belo Horizonte), eu ensino seis conceitos básicos de avaliação da água: o primeiro é a mineralidade, que representa 95% da água; o segundo é o ballance (equilíbrio) ou carbonatação, uma classificação que ainda não temos no Brasil, pois ocorre conforme a quantidade de gás efervescente na água; na sequência, temos a virgindade da fonte, ou seja, o tanto que aquela fonte está intocada. O quarto quesito é a orientação, que é o famigerado PH da água. Por fim, nós temos a dureza, que é a conta matemática usada pelo pessoal da cerveja para verificar os índices de magnésio e cálcio; e o vintage, que é quanto a água teve contato com os minerais que existem no solo.

Defeitos

Na degustação de vinhos, a gente usa muito a memória afetiva, olfativa e gustativa. Como é com a água?

Eu diria que é parecido, exceto que, na água, o olfato usamos mais para achar os defeitos. Eu, normalmente, trago referências. Por exemplo, o bicarbonato eu uso como referência aquele gosto que fica na boca depois de ir ao dentista, sabe como é? O magnésio eu me lembro do leite de magnésia que minha avó me fazia tomar na infância, e por aí vai.

Que tipo de defeito olfativo existe na água?

O mal armazenamento, o transporte, a embalagem e a contaminação no envase podem gerar defeitos na água. Às vezes, há aromas do solo também, mas nada que seja insurportável.

No vinho, os defeitos podem ser consertados. E na água?

Não. A água mineral in natura é vendida do jeito que sai da fonte.

A gente pode dizer que a água mineral in natura tem cheiro?

A água boa tem aroma gostoso de orvalho, de dia nascendo, de frescor. Agora, se tem cheiro de borracha, de petróleo, aí é defeito.

Qualidade

Como é a qualidade da água mineral no Brasil comparativamente com outros países?

No Brasil, a água mineral vem basicamente de lençóis freáticos não muito profundos e 100% de nossa água é muito boa, pois o Brasil é muito extenso, temos áreas muito remotas. Na Itália, por exemplo, as coisas são muito apertadinhas, por isso a virgindade das fontes é muito afetada. São fontes de vários anos. Dependendo da origem, a água é muito diferente. A água de geleira é muito diferente da água da chuva, por exemplo. Eu já importei água de iceberg desprendido da Groenlândia, que é safrada e vendida num vidro especial (fabricado na República Checa, por Sklárny Moravia, um engarrafador de 200 anos especializado em garrafas sob medida de alta qualidade) com tampa de madeira da Espanha (é esculpido com cuidado pelo fabricante especializado em embalagens de madeira Pujolasos). É uma água com baixa mineralidade, tanto quanto uma água de marca conhecida aqui no Brasil. Ou seja, de sabor, não tem tanta diferença em relação a uma água brasileira com baixa mineralidade, mas o corpo, a textura untuosa, é diferente.

Há no Brasil fontes de água com gás natural? Ou só temos água gaseificada artificialmente?

Temos as águas naturalmente gasosas de Cambuquira, Caxambu e São Lourenço, todas do terroir Circuito das Águas de Minas Gerais.

Bolhas…

Como é o mercado brasileiro, digo, os restaurantes. Eles estão se interessando mais pela água?

Como eu falei, no Brasil a gente tem em torno de mil fontes de água mineral e a maior concentração de água potável do mundo: 12%. Em segundo lugar está o Canadá, com 7%, mas que vêm das geleiras. Se não soubermos valorizar o que temos, os chineses, que estão anos-luz à nossa frente, vão chegar aqui comprando tudo. Então, quanto antes a gente entender para melhorar a nossa experiência, valorizar o nosso bem e parar de “tirar onda” comprando água importada, melhor será. Há muitos turistas vindo para cá, como os dos Emirados Árabes, que entendem de água porque não bebem álcool, e o mercado aqui não está muito preparado para atendê-los. 

Na degustação de vinho, qual é o papel da água?

Primeiramente, a água serve para limpar o palato entre uma taça e outra (nota da autora: a água também é muito importante para ajudar a diluir o álcool do vinho no organismo). Segundo, é preciso dizer que as pessoas devem parar de estragar o vinho. O serviço do restaurante precisa evoluir. O consumidor não deve aceitar qualquer água. A pergunta deve ser: ‘qual vinho, qual comida?’ Aí, oferecer a água de acordo. Para introduzir, o serviço deve oferecer uma água leve para não atrapalhar a degustação do cliente. A partir daí, o cliente vai ficar louco para experimentar as demais águas (risos). Por exemplo: jamais se deve oferecer espumante e água com gás.

Por quê?

Porque são bolhas com bolhas. Nesse jogo, quem tem que ganhar? O espumante – claro! – e a água com muito gás pode sobressair às bolhas do espumante. Se isso ocorrer, o consumidor perde a experiência.

Água que dá crocância

Então, como é uma harmonização básica de água com vinho?

Águas com mineralidade superbaixa (Resíduo de Evaporação de 0 a 50 mg/L) devem ser servidas com espumantes, vinhos brancos ou rosés jovens frutados e frescos. Mineralidade baixa (de 50 a 250 mg/L), com vinhos brancos mais encorpados e a turma da Pinot Noir. Média (250 a 800 mg/L), com vinhos jovens um pouco mais encorpados. Aqui já dá para “rolar” um Tannat. Mineralidade alta (de 800 a 1.500 mg/L), com vinhos tintos barricados um pouco mais complexos. E muito alta (acima de 1.500 mg/L), com vinhos ainda mais complexos. Se você prova com o vinho uma água da torneira com muito cloro, você mata o vinho. Do mesmo modo, se você prova um vinho branco, jovem, aromático com uma água de maior mineralidade, você corta todo aroma e sabor dele.

E como entra a comida nessa brincadeira?

A harmonização de água e comida é quase a mesma coisa do que ocorre com o vinho, inclusive nos contrastes. Uma harmonização bacana é um prato com ostras com uma água de alta mineralidade (harmonização por contraste). Este perfil de água dá uma crocância para a ostra.

Assim como ocorre com o vinho, tem copo certo para beber água?

O copo não interfere. Na degustação técnica, usamos a taça, mas é a boca que vai mandar.

Como é o uso da água no mercado de café e chá?

No café é mais difícil, porque depende do grão, da safra, do método que se vai usar para passar o café. Pode-se usar umas 10 águas diferentes. No chá, já tem referências dizendo que a água deve ser a mais pura possível, pois a água com cloro ou com muitos minerais pode oxidar a planta na infusão ou deixar a bebida muito amarga.

Glossário

Terroir: está explicado na minha coluna Os sentidos do vinho.

Resíduo de evaporação: quando se evapora toda a água a 180ºC, os resíduos sólidos minerais que sobram.

Safrada: no caso do vinho, é quando a uva foi colhida. No da água, é quando ela foi retirada do iceberg.


Adriana Cardoso é jornalista com mais de 20 anos de estrada, além de enóloga formada pelo Instituto Federal de Ciência, Educação e Tecnologia de São Paulo, campus São Roque. Fez estágio na Villa Francioni, vinícola localizada na região conhecida como Vinhos de Altitude, na Serra Catarinense, e hoje aventura-se a escrever e falar sobre vinhos, além de dar consultoria em comunicação para vinícolas e outros negócios do vinho. Acompanhe também o podcast Taninos e Afins nas plataformas Anchor, Breakers, Google Podcasts, Pocket Casts, RadioPublic e Spotify.