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Psicologia solidária

Tempos de recolhimento e de redescobrimento na quarentena pelo coronavírus

O mundo adoeceu e fomos convocados a voltar para as nossas raízes. Toda essa mudança mexe conosco, e o processo de se readaptar poder ser difícil, mas vamos conseguir

Pixabay | Arte RBA
Pixabay | Arte RBA

Tempos de recolhimento. De redescobrimento. De revisitar memórias, aprendizados e emoções. Quarentena. Tempos que nos puxam para dentro – para dentro de nós mesmos, para dentro dos nossos lares, das nossas convicções e estruturas.

O mundo adoeceu e fomos convocados a voltar para as nossas raízes. Quem de fato se recordava das suas raízes? Ou se lembrava do significado de estar dentro de casa seja com a sua família, sozinho ou colegas de apartamento?

Quantos de nós tínhamos tempo de parar e olhar para o céu, olhar para a vista ou simplesmente olhar para você mesmo e para o outro? Parece que tudo isso acabou ficando um pouco no esquecimento, coisas simples, cotidianas, porém muito importantes.

A correria da nossa vida acabou nos cegando ou deixando com uma visão parcial sobre o que é de fato ser humano. E isso não é culpa de ninguém. Vivemos em um mundo que exige demais de nós. Exige que estejamos sempre inteiros, produtivos, ativos, sem tempo a perder.

Tempo de quarentena

Estamos praticamente há um mês na quarentena. Durante esse período, muito conseguimos apreender, sentir e até mesmo observar algumas questões. Criando assim, algumas reflexões e possíveis formas de interpretar, de uma maneira não tão dolorida, esse momento. Jamais tirando a sua aflição. Acredito que essa percepção não tenha vindo apenas do diálogo interno eu x eu, mas sim, na troca (mesmo que virtual) com outras pessoas.

Vejo muitos que, apesar da dificuldade, estão tentando manter uma rotina e usar esse período para realizar algumas transformações. Por outro lado, consigo enxergar que outros não conseguem estabelecer essa organização interna. Talvez por serem mais extrovertidos? Pode ser que isso influencie, sim. Ainda mais que, arquetipicamente falando, o brasileiro sempre foi visto como o extrovertido, feliz, festeiro, alegre e que só pensa em carnaval durante 365 dias.

Carregamos esse sangue latino, essa cultura da extroversão tão compartilhada, essa expansão enorme que existe dentro de nós. Não que tenhamos que negar essa nossa face, ela existe e é importante ser trabalhada. Mas é justamente nesse lugar de acalmar esse lado tão para fora que vem a dificuldade de validar e até mesmo dar vazão para o que vem de dentro. Aqueles conteúdos que vamos anestesiando e, em algum grau, negligenciando, começam a aparecer, e eles vêm com força brutal.

Sombra

Jung chamava esse potencial não trabalhado de sombra. Algumas pessoas ao lerem tal termo, acreditam que seja algo ruim, negativo em nós. Mas não. São conteúdos que deixamos em segunda instância por serem dolorosos de entrar em contato, dilemas que até chegamos a negar em nós mesmos. No entanto, eles carregam forças criativas e tremendamente curativas. Só que, se não forem bem trabalhadas, ao chegar à consciência vêm de forma desgovernada, podendo até ser devastador para a pessoa.

E possivelmente essa sombra coletiva não trabalhada, devido à supervalorização do “mundo das coisas”, do mundo do Cronos, ou seja, do tempo contado em relógios e calendários, está emergindo de forma abrupta. Afinal, quem foi preparado para isso?

Muitas vezes a rotina, o trabalho e os diversos afazeres mascaram nossos sentimentos. Até mesmo como se o mundo interno ficasse sem voz (isso o que acreditamos, porque ele nunca fica!). E agora, nessa pausa, essas estruturas da consciência estão sendo gradualmente derrubadas.

É como se tivesse um muro de tijolos em volta de nós segurando uma água para não nos atingir, mas com esse muro sendo reconstruído devido à necessidade que temos de reinventar nossas vidas, automaticamente essa água vai invadir de alguma forma. E é exatamente isso que o COVID-19 e a quarentena podem, simbolicamente, representar. Toda essa água que tentamos segurar para não nos afogar e não conseguimos. Todo esse emaranhado de sentimentos e sensações que nos acometem porque somos humanos e sentimos. Toda essa mudança mexe conosco, e o processo de se readaptar poder ser difícil. No entanto, vamos conseguir.

Revisitando

É um momento de revisitar muitos processos. Parece até mesmo um mergulho de alma no nosso interior, mas sem querer também romantizar a situação preocupante pela qual estamos passando. Será que Hades nos levou para o seu mundo do inconsciente, igualmente fez com Perséfone, e lá teremos que ficar até integrarmos algumas questões que estavam descoladas?

Isso tudo tem feito lembrar o arquétipo da mãe. Nós ficamos nove meses na gestação dentro da barriga da nossa mãe. Lá nos desenvolvemos, somos nutridos e crescemos até o momento de estarmos prontos para ir para o mundo.

Quando ficamos doentes, às vezes nos pegamos pensando ou falando “nossa, tudo que eu queria era voltar para o útero da minha mãe!”. Fazendo uma analogia da situação atual com o arquétipo de mãe, quem sabe agora não estejamos todos passando, novamente, por esse processo gestacional, para que possamos renascer mais inteiros, integrados e conscientes de quem somos na nossa individuação e quem somos como coletivo. O que eu faço, afeta uma pessoa que está lá do outro lado do mundo.

Espero que, mesmo com todas as adversidades, quando tudo tiver passado, possamos sair mais humanos. Possamos não nos esquecer dos aprendizados de mais de um mês dentro de casa. Que consigamos aproveitar o nosso período gestacional e admitir aquilo que já não sabíamos, mas não queríamos aceitar: somos todos iguais. Somos seres humanos. Vamos nos tornar mais humanos.


sono quarentena

Andrea dos Santos Mendes Nunes e Marcela Mendes Nunes são psicólogas. Fazem parte do projeto Psicologia Solidária que atende de forma voluntária profissionais de saúde que enfrentam a pandemia do coronavírus em todo o Brasil.