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Culpar o futebol pelos nossos problemas é uma simplificação

'Um governo e um Congresso que trabalham diariamente contra o Brasil iriam parar durante a Copa?', aponta o professor da Unirio Rafael Fortes Soares, contestando a ideia do esporte como 'ópio do povo'

Lucas Figueiredo/CBF

“A associação ao esporte, particularmente de uma boa seleção de futebol, acontece em qualquer regime político”

São Paulo –Torcer ou não para a seleção brasileira? O futebol esconde os problemas de um país? Aliena a população? Em épocas de Copa do Mundo essas questões sempre vêm à tona, e não é de hoje, como mostra o professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e editor-executivo da Recorde: Revista de História do Esporte. Atualmente, ele trabalha na publicação Esporte e militância política, com previsão de lançamento para 2019, um livro de entrevistas com o também professor Vitor Melo, da UFRJ.

Na obra, são ouvidos militantes políticos que falaram sobre sua relação com o esporte à época da ditadura civil-militar e a  torcida pelo Brasil, dilema presente em especial na Copa de 1970. “O governo trabalhou essa relação com a seleção brasileira de algumas formas, em especial tentando associar a vitória ao regime militar, mostrando (o então presidente) Médici como uma espécie de ‘homem do povo’, um torcedor e admirador do futebol”, conta Fortes, em entrevista aos jornalistas Marilu Cabañas e Glauco Faria, na Rádio Brasil Atual.

O professor fala a respeito da dificuldade para alguns militantes à época torcer contra a Sseleção por conta da tentativa de apropriação do sucesso da equipe pelo regime. “É difícil conseguir num momento de Copa do Mundo pegar algo que envolve o lúdico, o emocional, a paixão e colocar em uma caixinha de forma separada”, aponta.

Em entrevista, o jornalista Juca Kfouri ilustra a situação lembrando do jogo de estreia do time brasileiro na primeira fase da competição, contra a extinta Tchecoslováquia. “Quer dizer então que não posso mais me comover quando eu ouço o hino brasileiro? O hino é do Brasil, não é da ditadura; a ditadura o usurpou. Mas era uma coisa tão rígida. Se bem que aquele filme, O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias resolve isso. Jogo do Brasil com a Tchecoslováquia. Primeiro, sai o gol da Tchecoslováquia. Tudo bem. Mas quando sai o gol do Brasil, dane-se a Tchecoslováquia, os comunistas. Além do que, quando o Petras faz gol e faz o sinal da cruz, que raio de comunista é esse que faz o gol e sai se benzendo?”, questiona.

“Esse exemplo do jogador da Tchecoslováquia permite também que a gente pense isso de forma mais ampla. A associação ao esporte, particularmente de uma boa seleção de futebol, acontece em qualquer regime político, em qualquer país”, sustenta Fortes. “Essa tentativa de se apropriar do sucesso do esporte é universal.”

O pesquisador comenta a pecha atribuída por muitos ao futebol de ser uma espécie de “ópio do povo”. “Existe um certo exagero, embora essa visão ainda apareça em muitos setores, especialmente da esquerda, hoje em dia”, pondera. “Penso em alguns elementos a se considerar. Por exemplo, tem aparecido nas últimas semanas reclamações, principalmente nas redes sociais, as pessoas falando ‘ah, durante a Copa do Mundo o governo Temer e o Congresso Nacional estão fazendo isso ou aquilo, aprovando essa lei, baixando a medida tal’, uma certa ideia de que estão aproveitando a época da Copa do Mundo para fazer maldades. Ora, esse governo e esse Congresso trabalham diariamente contra o interesse nacional e os direitos do povo brasileiro, por que eles parariam de fazer isso durante a Copa? Para assistir as partidas?”, questiona.

“A votação do impeachment da Dilma, a PEC do congelamento de gastos, a destruição da legislação trabalhista, tudo foi aprovado no Congresso Nacional com todo mundo prestando atenção, inclusive com boa parte da sociedade brasileira pressionando contra e aparentemente essa pressão fez pouca diferença para o comportamento do Congresso, que parece estar pouco preocupado com o que a sociedade brasileira pensa”, conclui.

Fortes não descarta que esse tipo de crítica carregue também um tom elitista. “Essa visão tem uma certa tendência de apontar não só o futebol, como tudo efetivamente popular no Brasil como alienação e responsável pelos nossos problemas. A gente encontra esse discurso também em relação ao carnaval, à televisão, à novela, como se as pessoas devessem discutir política e se mobilizar o tempo todo, não pudessem também querer se distrair, descansar, lidar com o lúdico, com as paixões.”

Isso seria percebido, inclusive, na demora do meio acadêmico em pesquisar determinados temas. “Até os anos 80, praticamente não havia pesquisa sobre futebol, esporte e novela na universidade brasileira. Acho que isso fala muito mais sobre preconceito da própria universidade do que um problema da sociedade.”

“O povo cubano é apaixonado pelo esporte, o japonês, o dos Estados Unidos, o da Suécia… Isso é uma variável quase universal e temos sistemas políticos e econômicos muito diferentes, o grau de garantia e direitos básicos da população é muito diferente de um país para o outro. É uma simplificação querer culpar a paixão de uma parte da população brasileira pelo esporte como causa para os nossos problemas”, avalia.

Ouça a íntegra da entrevista abaixo: