Quase inimigos

Copa 2018: quando a rivalidade vai além das quatro linhas

Cada Mundial tem partidas marcantes, ou por motivos esportivos ou em razão de conflitos internacionais que as precedem. Jogos como Inglaterra x Argentina são capazes de reunir todos esses ingredientes

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Diego Maradona comemora o “gol do século” em jogo contra a Inglaterra na Copa de 1986

Tradução livre a partir de El Diario Nesta quinta-feira (14) começa o Mundial da Rússia. A partida inaugural reúne dois dos principais atores que se enfrentam de forma indireta na Síria. Por um lado, a Rússia, que tem dado todo tipo de apoio ao regime de Damasco, e do outro a Arábia Saudita, que tentou derrubar Bashar al Asad por meio dos rebeldes.

A família real saudita vê Asad como um aliado de seu arqui-inimigo Irã, com o qual mantém um enfrentamento ancestral, sendo os dois países os mais representativos dos dois ramos do Islã: sunitas (sauditas) e xiitas (iranianos).

Parece improvável que Irã e Arábia Saudita se classifiquem em seus grupos, mas se os dois conseguissem poderiam cruzar nas oitavas de final. Isso sim seria uma partida da mais alta rivalidade. E quem vencer surge uma oportunidade para abrir uma via diplomática…

Os sauditas fecham sua participação na fase de grupos contra o Egito. Ainda que agora sejam aliados contra inimigos comuns como Irã e Catar, os dois sempre disputaram a supremacia no mundo árabe. O Egito representa desde os tempos de Nasser (que governou o país de 1954 a 1970) a bandeira do nacionalismo árabe, enquanto os sauditas têm sido a potência econômica aliada dos Estados Unidos.

No grupo da Espanha, além de Portugal, estão Irã e Marrocos. No início de maio, Rabat anunciou o rompimento das relações diplomáticas com o regime de Teerã, acusando-o de financiar e armar a Frente Polisario. O governo marroquino acusou a milícia libanesa do Hizbolah (tutelada pelo Irã) de treinar membros do Polisario em Tinduf. Além disso, o governo marroquino expulsou os diplomatas iranianos. O Irã negou todas as acusações e as vincula a uma estratégia da Arábia Saudita para isolar o país internacionalmente. A geopolítica do Oriente Médio vai estar muito presente na primeira fase do torneio.

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Feridas da Iugoslávia

Seria quase um milagre que Croácia e Sérvia se encontrassem neste Mundial da Rússia. Ambas teriam que chegar às semifinais. Esta sim seria uma partida com história, já que as duas nunca se encontraram em um jogo oficial. Na memória perdura o jogo que em 13 de maio de 1990 foi como gasolina para o pavio que já estava aceso na antiga Iugoslávia.

Disputava-se em Zagreb o clássico do futebol iugoslavo entre o Dínamo e o Estrela Vermelha de Belgrado. Nas arquibancadas os ultras sérvios começaram a atacar os torcedores croatas ante a passividade da polícia iugoslava (controlada por Belgrado). Boban, o principal jogador do Dínamo, frustrado pelo que via, acabou dando um chute em um policial. Esta se converteu automaticamente na imagem da luta croata contra o opressor sérvio. Quem não veria agora, ainda que fosse por mero interesse antropológico, um duelo entre Croácia e Sérvia?

Polônia e Rússia também terão que chegar às semifinais para se enfrentar. O conflito histórico entre os dois teve muitos momentos marcantes. Desde o Império Russo controlando grande parte do território polonês passando pela dominação soviética e à tensão pela presença da Otan às portas da Rússia de Putin. Talvez o episódio mais doloroso para os poloneses tenha sido descobrir como os soviéticos os enganaram ao culpar os alemães pelo Massacre de Katyn. Nesse bosque russo foram assassinados mais de 20 mil poloneses, entre os quais se encontrava a nata de seu comando militar e policial, além de grande parte de seus intelectuais, professores, artistas… O regime de Stálin tratou de responsabilizar os nazistas até que em 1990 Gorbatchev reconheceu que a ordem havia sido dada pelo Kremlin.

Com as Malvinas na lembrança

A quintessência de uma rivalidade que supera o campo desportivo é a que mantêm Inglaterra e Argentina.

A luta dentro de campo começou em 1966 quando os ingleses eliminaram os argentinos em Wembley com uma polêmica expulsão de Antonio Rattín, que, ao abandonar o campo, espremeu levemente uma bandeira inglesa com as mãos, fazendo gestos para a arquibancada.

Mas tudo chegou a uma outra dimensão com a Guerra das Malvinas em 1982. Depois da humilhante derrota militar argentina, o futebol deu uma oportunidade de revanche na vitrine global que foi o Mundial do México em 1986. Maradona fez no duelo dois gols para a posteridade nas quartas de final contra os ingleses. O primeiro é o de “la mano de Dios” e o segundo, que os argentinos lembram como o “gol do século”, no qual deixou pra trás meio time inglês. O primeiro machucou mais que o segundo. Ambos voltaram a se encontrar em 1998, com vitória argentina, e em 2002, com um triunfo inglês. A eterna revanche nesta Copa só será possível nas semifinais.

O Mundial da Rússia oferece múltiplos enfrentamentos de países com rivalidade além-campo. Entre os classificados não se encontram os Estados Unidos. Pode ser que o perfil de Donald Trump no Twitter tenha perdido uma grande ocasião para desenvolver seu particular conceito de diplomacia.