Copa de 1978: papelitos

Argentina, entre a euforia e as dores de seu primeiro título mundial

Portal reúne 78 histórias do campeonato vencido pela seleção sul-americana em meio à ditadura, 40 anos atrás. Histórias que retratam a paixão do esporte e a crueldade do autoritarismo

Reprodução “Papelitos”/Arte RBA

Cenas de ontem e de hoje: campanha de boicote ao Mundial; Videla com seleção peruana; holandeses visitam antigo centro de tortura; Fillol encontra parentes de desaparecidos

São Paulo – “Éramos 25 milhões de argentinos festejando. E nós, os jogadores, também. Depois, quando o tempo passou e chegou a democracia, começamos a saber de tudo que havia acontecido. Eu comecei a sentir vergonha. Sinto muita vergonha porque me dou conta de que se usou esse enorme feito, a glória de sagrar-se campeão do mundo, para continuar sequestrando, torturando e matando gente. Me dá vergonha dizer que fui feliz porque fui campeão do mundo.”

A declaração é de Ubaldo Fillol, mítico goleiro da seleção argentina em três Copas, jogador de vários clubes de seu país, com destaque para o River Plate, e que atuou também no Flamengo. Assinado pelo jornalista Mariano Verrina, o texto com “Pato” Fillol é um dos 78 que compõem o portal Papelitos, com histórias da Copa de 1978, cuja final completou 40 anos nesta segunda-feira (25): os donos da casa venceram a Holanda por 3 a 1 e conquistaram seu primeiro mundial em meio à ditadura (1976-1983).

Quatro décadas depois, Fillol voltou ao Monumental de Nuñez, estádio do River Plate, palco da final da Copa de 1978. Estava acompanhado de Angela “Lita” Paolín de Boitano, mãe de dois filhos desaparecidos na ditadura, e de Graciela Palacio de Lois, cujo marido também sumiu. Graciela fala em “tremenda ambivalência” entre as famílias de desaparecidos políticos.

“Eu me lembro que meu pai não perdia as partidas e eu não via nada, porque só pensava no desaparecimento de meu marido. Minha filha, com 2 anos, se punha diante da TV e dizia ‘Mario Kempes'”, conta Graciela, citando um dos craques do time argentino, autor de dois gols na decisão.

Seu marido era Ricardo Lois, que desapareceu junto com um grupo de estudantes da Juventude Peronista da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Buenos Aires (UBA). Ele foi levado para a Escola de Mecânica da Armada (Esma), conhecido centro de torturas da ditadura. Ironicamente, está localizado a pouca distância do Monumental. “De lá (Esma) se escutava a gritaria da torcida”, lembra Graciela. Há 10 anos, o local abriga o Espaço Memória e Direitos Humanos.

Naqueles dias de Copa, “o país estava enlouquecido”, lembra Estela de Carlotto, das Avós da Praça de Maio, coletivo nascido no ano anterior. Seu marido, Guido, ex-jogador do Estudiantes de La Plata, permaneceu sequestrado durante 25 dias, e a filha Laura desaparecera em novembro de 1976. Em seu relato, Estela conta que “enquanto seu irmão e sua cunhada choravam de alegria, ela e Guido choravam de tristeza”. Laura não voltou, mas em 2014 os avós puderam conhecer Ignácio, que se tornou o “neto recuperado” número 114, entre tantas crianças tiradas de seus pais e entregues a outras famílias durante a ditadura.

O portal Papelitos se divide em seis seções: Direitos Humanos, Futebol, Exílio e Boicote, Meios de Comunicação, Organização do Mundial e Repressão. É uma plataforma de textos organizada pelo Memória Aberta, que reúne entidades de direitos humanos, e pelo coletivo jornalístico NAN, com apoio da Embaixada da Holanda na Argentina.

O site “recolhe testemunhos, recupera discursos, reconstrói histórias e oferece análise desde as perspectivas que atravessaram esse evento esportivo: a de seus atores – futebolistas e corpo técnico argentino e de outros países –, a dos protagonistas do contexto de terror que aqui se vivia – homens e mulheres presos nos centros clandestinos de detenção, seus familiares que buscavam sem saber o que havia sido feito deles, os organismos de direitos humanos –, a de quem desde o exílio batalhava por converter esse espetáculo esportivo em uma oportunidade para revelar os crimes de lesa-humanidade que ocorriam na Argentina, a que ofereceram os meios de comunicação, a que ficou marcada nas expressões culturais, a que refletiu a vivência dos torcedores, a dos repressores”, diz o texto de apresentação.

Boicote à Copa

Quem também relembrou aquela decisão foram os holandeses Arie Haan e Ernie Brandts, que 40 anos depois viajaram à Argentina e visitaram a sede da Esma. “Antes desse dia (25 de junho de 1978) só jogávamos futebol, mas no momento de jogar com a Argentina surgiu a discussão sobre o que estava acontecendo, o que deveríamos fazer e como deveríamos atuar, disse Haan, com 29 anos à época da final. Integrante da “Laranja Mecânica” de 1974, ele conta que havia um grande movimento na Holanda para que a seleção não participasse da Copa, por causa dos desaparecimentos forçados.

Um dos textos aponta a França como “epicentro” do boicote ao Mundial, que se espalhou por outros países europeus. Futuro secretário de Direitos Humanos da Argentina (de 2003 a 2012, quando morreu), o advogado Eduardo Luis Duhalde comandava em Madri um comitê de boicote ao campeonato. Mas nem todos os grupos eram a favor desse movimento. Alguns acenavam com a popularidade do futebol e viam também a chance de denunciar mundialmente o regime autoritário instalado no país. “A ditadura não durou mais pelo êxito – esportivo – de 1978 e nem caiu pela derrota – esportiva – de 1982. Isso não nos absolve de tantas vergonhas”, diz o escritor Pablo Abalarces, autor, entre outros, do livro Fútbol y Patria – el fútbol y las narrativas de la nación en la Argentina.

“Pensamos que se não viéssemos não mudaria nada. Por outro lado, poderia mudar mais se viéssemos”, prossegue o holandês Haan, autor de um dos gols na partida contra a Itália que classificou sua seleção para a final de 1978. Aos jogadores não era permitido sair do hotel, mas um deles, Wim Rijsbergen, conseguiu escapar da concentração e foi até a Praça de Maio encontrar-se com familiares de desaparecidos. Haan revela que o elenco chegou a discutir o que fazer em caso de vitória. Os jogadores decidiram não aceitar a taça. Vice-campeões, não foram receber a medalha.

Em outro texto do portal, o entrevistado é o técnico da seleção argentina, César Luis Menotti, que adora falar sobre futebol, mas fica desconfortável quando o assunto é a Copa de 1978. Mesmo assim, diz que a lembrança é de felicidade “por ter cumprido a palavra empenhada, que estava acima de qualquer resultado”, sobre a conquista. “Sinto que fiz o que tinha de fazer. Muita gente havia confiando em nós e por eles, pelos jogadores, teríamos que jogar e tratar de ganhar o Mundial. E não é a mesma coisa ganhar em casa. É como a camisa do Boca (Juniors). É muito mais difícil jogar com a camisa do Boca no campo do Boca do que no estádio do Rosário Central.”

Com pai peronista e mãe que odiava Perón e defendia Evita, Menotti também militou no peronismo e depois filiou-se ao Partido Comunista. “Sabia que havia presos políticos. E mais, me comprometi e ajudei em muitas coisas que nunca vieram à tona e nem me interessa dizê-las. O que não imaginava é, por exemplo, que atiravam gente de aviões ou tantas outras atrocidades que se foram conhecendo depois, com o passar do tempo.”

O treinador enfatiza a qualidade de sua equipe, que considera “invencível”. E considera uma “infâmia” o campeonato não ter sido valorizado como deveria. “Realmente é uma vergonha não reconhecer tudo o que fizeram esses jogadores, que jogaram de graça durante toda a vida, que nunca cobraram um prêmio. Doamos US$ 1,3 milhão à AFA (Associação de Futebol Argentina) por um amistoso que nós mesmos organizamos, porque não queriam fazer, diziam que dava prejuízo. (…) Jogavam para as pessoas. E para ninguém mais.”

Ditador no vestiário

Menotti conta que o ditador Jorge Rafael Videla (1925-2013) visitou apenas uma vez a seleção. “Veio à concentração de helicóptero, fez umas saudações e se foi.” Por outro lado, o cantor Flaco Spinetta (1950-2012), ídolo do rock argentino, cantou para os jogadores pouco antes da Copa. O técnico diz ainda que ajudou a libertar uma presa política, que abrigou durante um mês em sua casa.

Videla foi ao vestiário da seleção antes da mais polêmica partida daquela Copa e em todos os tempos, entre a dona da casa e o Peru. A Argentina precisava vencer por pelo menos quatro gols de diferença para ir à final – se não conseguisse, a vaga seria do Brasil, que tinha jogado pouco antes e derrotado a Polônia por 3 a 1. Os arquirrivais sul-americanos tinham chegado à última rodada da segunda fase com o mesmo inúmero de pontos, depois de empatar por 0 a 0. Os argentinos derrotaram os peruanos por 6 a 0, alimentando até hoje todo tipo de especulação.

Em um dos textos reunidos em Papelitos, o capitão do Peru, Héctor Chumpitaz, afirma que não o time não “entregou” o jogo. “Foi o que de pior aconteceu com cada um dos jogadores em nossas carreiras. Deixamos uma imagem triste diante dos torcedores, que pensavam que havíamos deixado fazer os gols.” Ele diz sentir vergonha, mas apresenta uma explicação: “Não estávamos acostumados a jogar tantas vezes seguidas. Com o correr dos jogos já não fomos os mesmos.” Segundo o defensor, no início, a partida chegou a ser equilibrada.

Ídolo máximo do futebol peruano, Teófilo Cubillas, presente àquela partida, também diz que não houve “entrega” do jogo. “O Brasil perdeu por 7 a 1 no Mundial de 2014, e ninguém se pôs a desconfiar. Além do mais, no mesmo Mundial de 1978 o México perdeu de 6 a 0 da Alemanha. Resultados assim acontecem. Criticar é muito fácil.” Mas para o ex-jogador Juan Carlos Oblitas, hoje diretor da Federação Peruana de Futebol, “nessa partida se passaram coisas raras”, acrescentando: “O único por quem ponho as mãos no fogo é Quiroga, nosso goleiro. Todos duvidavam dele, que não teve nenhuma responsabilidade nos gols.” O goleiro era argentino naturalizado peruano.

Na primeira fase, o Peru venceu a Escócia (3 a 1) e o Irã (4 a 1), empatando com a Holanda sem gols. Na segunda, três derrotas: Polônia (0 a 1), Brasil (0 a 3) e Argentina. Antes dessa última partida, já eliminada, a seleção recebeu no vestuário justamente o presidente argentino. Para completar, junto com ele estava Henry Kissinger, secretário de Estado norte-americano até janeiro de 1977. Segundo o relato, Videla leu uma nota sobre a “irmandade” entre os povos do Peru e da Argentina. O texto lembra que o presidente peruano à época era o também ditador Francisco Morales Bermúdez, que “tinha laços próximos com o governo Videla”. E o chefe da delegação do Peru na Copa era “Paquito”, um dos filhos do presidente.

As desconfianças sobrevivem até hoje. O fato é que a Argentina, que tinha um bom time, seguiu adiante e ganhou a Copa. Ao Brasil restou protestar e reivindicar para si o título de “campeão moral”, como disse o técnico da seleção, capitão Cláudio Coutinho (1939-1981), que havia sido preparador físico do time tricampeão de 1970. Na decisão do terceiro lugar, o Brasil derrotou a Itália por 2 a 1 e terminou o torneio invicto.

Outro texto traz a história de Jorge “Lobo” Carrascosa, “o capitão que renunciou à glória”: com quase 30 anos, ele era o capitão da seleção argentina antes da Copa. Já se sentia desgostoso com situações que presenciava no mundo do futebol, que acabou deixando em 2 de dezembro de 1979, mesmo tendo mais dois anos de contrato com o Huracán. “Não dirá nunca que decidiu sair do Mundial 78 por causa da ditadura. Tampouco o negará.”

Por fim, os papelitos. O termo que dá nome ao portal vem de uma polêmica às vésperas da Copa de 1978. “¡Tiren papelitos, muchachos!”, dizia o personagem Clemente, criado em 1973 pelo desenhista argentino Carlos Loiseau, o Caloi, mestre do humor gráfico. Havia uma campanha para que a torcida não atirasse papéis ao campo na entrada da seleção, uma característica local – que, segundo alguns relatos, surgiu nos anos 1960 –, porque isso poderia trazer uma “má imagem” ao país.

Para Clemente, era uma tentativa de “suspender a realidade”, e o personagem se envolveu na campanha pró-papelitos. “Era uma manifestação da torcida muito colorida, participativa. Os cânticos e os papelitos eram o dizer “presente” das pessoas”, disse Caloi em uma de suas últimas entrevistas – ele morreu em 2012. Como se viu, a torcida ignorou o apelo oficial comemorou o título em meio a uma chuva de papel.

A ditadura levaria mais cinco anos para cair. Já com a democracia de volta, os argentinos e seus papelitos comemorariam o bicampeonato mundial em 1986, vencendo a Alemanha na decisão por 3 a 2. Quarenta anos depois do primeiro título, nesta terça-feira (26), a Argentina novamente sofreu, mas se classificou para as oitavas de final da Copa.