Autogestão produz apartamentos mais baratos e maiores que empreiteiras

Movimentos querem que modelo responda por 25 mil das 55 mil moradias prometidas por Fernando Haddad. No Minha Casa, Minha Vida, apenas 1,9% das unidades são construídas diretamente pela sociedade civil

Na Brasilândia, apartamento 22% menor foi quase 45% mais caro (Fotos: Raoni Maddalena)

São Paulo – Uma mesa de jantar com quatro cadeiras. Um varal de chão com roupas penduradas no quarto do casal. Olhados separadamente, os dois objetos do cotidiano doméstico podem não significar nada, mas a presença da mesa na casa de Aline Silva, de 23 anos, e o varal no quarto de Martha Largarteira, 53, são sintomas da escolha de governantes na hora de financiar a construção da moradia das duas famílias.

As duas mulheres são praticamente vizinhas e vivem em conjuntos habitacionais da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) na Brasilândia, zona norte de São Paulo. No entanto, o lar que fica no conjunto conhecido como B11, onde o varal tem de ficar no quarto, foi construído por empreiteiras com financiamento público e tem 46 m². Já o que cabe a mesa foi realizado pelo sistema de autogestão, em que os recursos da CDHU são administrados por entidades de bairro ou movimentos sociais e tem 56 m². 

“É um tamanho bom, mas, quando os meus dois filhos forem maiores e quiserem brincar juntos, vai ficar pequeno”, antecipa-se na queixa Aline, que vive no apartamento com o marido e dois filhos, uma menina de 5 anos e um bebê que tinha apenas um mês quando a reportagem visitou a família. Atualmente, o carrinho do pequeno divide sem conflitos o espaço com o triciclo da filha mais velha e a mobília. Mas, como o conjunto não tem área de recreação, é provável que, quando o bebê crescer, a reclamação de Aline se torne realidade e o bebê não possa pedalar com a irmã por entre os cinco cômodos da casa – dois quartos, sala, cozinha e área de serviço.

Ainda assim, a situação é mais confortável que a dos moradores do conjunto B10, a poucos metros de distância, onde Martha vive com o marido e a filha já adolescente. Mesmo a família tendo menos pessoas e nenhuma criança, o espaço é insuficiente. Depois de mobiliada com dois sofás e uma pequena estante, a sala fica apertada. Na cozinha, a situação é ainda pior – o espaço se confunde com o direcionado para a área de serviço. Geladeira e tanque de lavar roupa ficam lado a lado.

Em apartamento feito com autogestão, filhos de Aline têm espaço para brincar

As diferenças não se restringem à parte interna dos apartamentos. As áreas comuns do prédio de Aline também são mais espaçosas e melhor aproveitadas que as de Martha, que reclama que muitos materiais usados na obra já se deterioraram e precisaram ser trocados. “A gente já gastou mais de R$ 500 só para trocar as janelas. As que eles colocaram aqui eram de ferro e enferrujaram”, afirma. 

As diferentes modalidades de financiamento, além de influenciar na qualidade de vida das famílias, ainda têm outro ingrediente. Mesmo tendo sido entregue três anos antes que os apartamentos maiores, em 2002, o custo da construção dos apartamentos menores saiu mais caro: R$ 31 mil, contra R$ 21,4 mil por unidade, segundo a própria CDHU.

Os imóveis do B11 foram erguidos em autogestão. Nessa modalidade de financiamento, os recursos disponíveis para a construção das moradias são repassados diretamente para entidades formadas pelos próprios moradores e movimentos sociais, que têm a possibilidade de administrar toda a obra desde a elaboração do projeto. Até 30% da obra é executada pelos futuros moradores, em sistema de mutirão, o que barateia o serviço. Mas esse não é o fator principal, afirmam as lideranças dos movimentos de moradia, já que o próprio conjunto em que Martha vive com a família também se valeu de mutirões. O restante da mão de obra é contratada, assim como equipamentos e materiais necessários pelos moradores organizados. Uma central de compras é criada e corre fornecedores procurando os melhores preços.

“A empreiteira sempre quer ganhar dinheiro e nós estamos preocupados com a qualidade. Essa é a diferença”, afirma o coordenador da Associação dos Trabalhadores Sem-Terra da zona oeste e noroeste da cidade, José de Jesus Ferreira da Silva, para explicar a razão por que um apartamento 22% menor foi quase 45% mais caro. “A gente acompanha tudo desde o começo, discute o projeto, a qualidade do material”, explica.

No estado de São Paulo, o governo não adota mais o modelo, alegando que no passado “tiveram muitos problemas com a falta de qualificação” das entidades, informou a assessoria de imprensa da CDHU. Na capital, a prefeitura não disse quantos projetos atualmente usam o sistema, mas os movimentos reivindicam que 25 mil das 55 mil moradias prometidas pelo prefeito Fernando Haddad (PT) sejam realizadas por autogestão, por meio do Minha Casa, Minha Vida Entidades, sistema em que moradores organizados em associações e credenciadas junto à Caixa Econômica Federal podem pleitear recursos para a construção de moradias. 

Para o coordenador da União Nacional de Moradia (UNM), Donizete Fernandes de Oliveira, o sistema de autogestão é uma forma de “democratizar o capital”. “A autogestão é luta de classes”, defende. “Se eu posso construir 56, 58 m², para que eu vou querer que empresários construam 46 m² com o mesmo recurso? Para que eu vou dar lucro para capitalista? A autogestão é hoje a grande discussão em torno da cadeia produtiva da construção civil”, afirma Donizete.

Ele explica que a discussão nacional sobre o modelo se intensificou a partir de 2009, com a criação do Minha Casa Minha Vida Entidades, mas, ainda assim, apesar de as vantagens parecerem evidentes, a utilização da autogestão ainda é tímida. Em todo o Brasil, apenas 1,9% de 1,089 milhão de unidades para pessoas com renda até R$ 1.600 construídas pelo Minha Casa, Minha Vida são destinadas às entidades, o equivalente a 0,81% do total investido no programa, ou R$381,8 milhões dos R$ 47,13 bilhões contratados até o final de fevereiro, segundo o Ministério das Cidades.

“Para fazer (em autogestão), o Poder Executivo tem de ter vontade, porque tem muito lobby. Quem faz a produção de escala da construção civil são os mesmos que financiam campanhas eleitorais”, avalia Donizete. “Como ainda não tem muito divulgação a respeito, as empreiteiras nadam de braçada e ainda ficam torcendo para as casas que a gente constrói caírem.”