São Paulo extingue registro de resistência seguida de morte em boletins de ocorrência

Resolução do governo paulista segue recomendação da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, do Ministério da Justiça e de movimentos sociais

Resolução também determina que comunicação a polícia civil seja imediata e que socorre de vítimas deve ser feito pelo SAMU (Foto: Marcelo Camargo/AgBr)

São Paulo – Atendendo a uma recomendação da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, a Polícia Civil de São Paulo não vai mais registrar ocorrências de homicídios cometidos por policiais como “resistência seguida de morte”. A partir de hoje (8), casos em que pessoas são mortas após supostos conflitos com a força pública de segurança deverão ser registrados como “morte decorrente de intervenção policial”. 

A recomendação da SDH foi feita no início de dezembro como forma de evitar a manipulação dos registros policiais. À época, o secretário de Segurança Pública, Fernando Grella Vieira, questionado pela RBA, chegou a dizer que a extinção deste expediente não era “prioridade”. 

Meses antes, em entrevista à edição de setembro da Revista do Brasil, a secretária Nacional de Segurança Pública do Ministérios da Justiça. Regina Miki, havia criticado a linha adotada pela polícia paulista: “É preocupante a posição de uma polícia que realmente não cumpre com seus deveres. Temos de nos ater às regras e punir os desvios e as exceções. Sou defensora do registro de homicídio com a apuração, investigação, da ilicitude do ato no que se chama auto de resistência (Resistência Seguida de Morte, em São Paulo). Quando o registro é de homicídio, eu não estou atribuindo culpa ou dolo, estou dizendo que há alguém morto, artigo 121 do Código Penal”, afirmou.

A resolução publicada hoje (8) no Diário Oficial do Estado também estabelece outros parâmetros para a ação integrada das polícias Civil, Militar e Técnico-Científica no atendimento das ocorrências. A partir de agora, em todos os casos que registrem feridos, os policiais que primeiro atenderem as ocorrências descritas deverão chamar uma equipe de resgate do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), ou serviço local de emergência, para o socorro imediato da vítima.E, em seguida, comunicar o seu centro de comunicações –  no caso da Polícia Militar, o Centro de Operações da Polícia Militar (Copom) e, no da Polícia Civil, o Centro de Comunicações e Operações da Polícia Civil (Cepol).

Quando o fato for atendido por policiais militares e eles avisarem o Centro de Operações da Polícia Militar, a informação deverá ser repassada pelo Copom à Polícia Civil e este, por sua vez, deve acionar a Superintendência da Polícia Técnico-Científica (SPTC) para a realização da perícia.

No entanto, se a SPTC tiver acesso por outros meios à notícia de um crime, deverá encaminhar imediatamente, mesmo sem a comunicação do Cepol, equipes para o local da ocorrência. “O objetivo é tornar mais ágil a chegada da perícia”, explicou Grella Vieira. “A perícia, então, aguarda a chegada da autoridade policial (delegado), como determina a lei, para iniciar os trabalhos.”

Resgate

A resolução também prevê que os policiais não poderão mais fazer o resgate das vítimas, que será feito exclusivamente pelo SAMU. A medida pretende preservar o local do crime e evitar que policiais com más intenções adiem o atendimento dos feridos levando-os para locais distantes do local da ocorrência, como acontece muitas vezes hoje. 

“É importante que as vítimas de agressões e crimes, bem como aquelas envolvidas em confrontos com a polícia, tenham acesso a serviços de socorro especializados, o que já acontece nos casos de acidentes no trânsito”, explica o secretário. “E, por outro lado, os locais sejam preservados para que a Polícia Civil chegue com mais eficiência à autoria e motivação de crimes, uma vez que o SAMU possui protocolo de atendimento de ocorrências com indícios de crime buscando preservar evidências periciais, sem comprometimento do pronto e adequado atendimento às vítimas”, afirma Grella. 

Já para o professor da Escola de Direito de São Paulo, da Fundação Getulio Vargas, e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Guaracy Mingardi, apesar de a proposta ser positiva do ponto de vista investigativo, pode colocar em risco a integridade das vítimas. “É evidente por que fizeram isso: porque existem policiais que descaracterizam o local do crime. Mas tem um problema aí: e quando o sujeito estiver vivo?”, questiona. Ele acredita que existem outras formas de controlar a ação policial.

Para Mingardi, o mais importante é o socorro à vítima, mas é preciso garantir que o policial envolvido não altere as possíveis provas presentes no local. “E para isso existem alguns controles. Tem que ter um inquérito muito pesado quando o sujeito já entra morto no hospital, porque a probabilidade de ele ter sido levado morto já é muito grande. Você retira o cadáver para dizer que socorreu e ao mesmo fazer com que a perícia não possa atuar lá”, sugere.

Outra ação que poderia impedir a ação criminosa por parte de policiais é o controle da viatura por meio de equipamentos de GPS, segundo o pesquisador. “Se o tiroteio foi tal hora, quanto tempo levou para chegar ao hospital? Meia hora? Então é porque o sujeito pegou o caminho mais comprido para dar tempo de a vítima morrer”, especula. Outra forma seria o delegado da região ir imediatamente ao local para liberar o socorro a ser feito por policiais. “Mas teria que ser imediatamente”, adverte.

O professor avalia que uma das principais formas de impedir futuras manipulações do local do crime seria a efetiva punição das pessoas que praticassem esse ato. “Segundo o Código Penal, o local do crime tem que ser preservado. Se descaracterizar, é crime. As pessoas têm que ser punidas por isso. É uma atitude que tem que ser adotada pela Polícia Militar. A corregedoria tem que pegar pesado nesses casos”, defende.

Mingardi destacou ainda que essa prática está sendo relatada nos casos recentes de violência em São Paulo, mas que não há identificação dos responsáveis. “Nos últimos tempos, nós tivemos várias denúncias de recolhimento das cápsulas das balas por parte dos policiais militares ou por parte de alguém que apareceu depois”, declarou.

A medida é considerada um avanço pelo diretor do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) de São Paulo, Luiz Carlos Wilke.

“A norma é adequada, até mesmo porque significa uma evolução. Toda cidade vai se adequando e melhorando seu sistema de emergência até que, em um determinado momento, os únicos a fazerem esse tipo de atendimento pré-hospitalar é o serviço de emergência, como é o caso do Samu”, avaliou. O diretor garantiu que o atendimento do Samu cumpre o tempo-padrão internacional de dez minutos para chegar às ocorrências graves.

Wilke discorda que a proibição do socorro pelas viaturas da polícia represente um risco à integridade das vítimas. “Qualquer ferido grave é muito melhor atendido por profissional treinado, com equipamentos. Antes [com o socorro policial] a vítima não era atendida, e sim removida para um hospital. Com o Samu intervindo, ela passa a ter o atendimento inicial já no local”, argumenta.

O diretor aponta que as ocorrências resultantes desses crimes representam menos de 1% do total de 1,2 mil atendimentos diários feitos pelo Samu em São Paulo. “Em muitos desses casos, o Samu já é chamado e faz o socorro. São poucos os casos em que as viaturas transportam a vítima para o hospital. Temos casos que impactam muito mais no sistema, como os trotes, que representam 20% das ocorrências”, relatou.

O serviço de resgate do Corpo de Bombeiros também não deve ser afetado pela resolução da Secretaria de Segurança Pública (SSP) de São Paulo, conforme explicou o capitão Renato de Natale Júnior, que responde pelo setor de comunicação social da corporação. “Por ser uma resolução recente, o comando ainda não tem uma posição específica, mas, do ponto de vista operacional, nada deve mudar”, declarou.

Com informações da Agência Brasil