Refém das chuvas, Duque de Caxias ignorou estudo sobre áreas de risco

Antigo chefe da Defesa Civil afirma ter sido exonerado pelo então prefeito Zito porque queria mais verbas para fortalecer ações de prevenção e alerta

Distrito de Xerém foi um dos mais castigados pelas fortes chuvas dos primeiros dias do ano (ABr/Vladimir Platonow)

Rio de Janeiro – Maior cidade da Baixada Fluminense, Duque de Caxias aprendeu ao longo dos anos a conviver com o medo da chuva durante o verão. Logo nos primeiros dias de 2013, as fortes precipitações comuns à estação mais uma vez provocaram inundações, deslizamentos e outros desgastes, sobretudo no distrito de Xerém, causando a morte de um homem e fazendo 1.200 desalojados. O luto e o transtorno, no entanto, teriam sido evitados se a prefeitura não tivesse ignorado um estudo realizado pelo governo estadual que aponta a existência de 98 áreas de risco no município.

O estudo, parte do Projeto de Cartografia de Riscos de Escorregamentos em Encostas nos Municípios no Estado do Rio de Janeiro, foi realizado pela empresa de consultoria geológica Regea a pedido do Departamento de Recursos Minerais do Estado (DRM-RJ). Segundo afirma o antigo coordenador da Defesa Civil Municipal, seu conteúdo foi levado ao conhecimento do então prefeito José Camilo Zito dos Santos em abril de 2011, mas nada foi feito em seguida. Além disso, conforme denúncias de servidores da Secretaria Municipal de Educação, a prefeitura teria recomendado a não divulgação no Atlas Escolar de Duque de Caxias lançado no ano passado.

O prefeito recém-empossado, Alexandre Cardoso (PSB), promete mudar a situação. Logo em seu primeiro dia de governo, ele elevou a Defesa Civil Municipal ao status de Secretaria de Governo, nomeando como secretário o tenente-coronel bombeiro Marcello da Silva Costa com a promessa de mais recursos para projetos de conscientização da população e prevenção de desastres. Já a nova titular da Secretaria Municipal de Educação, Marluce Gomes, embora não se manifeste oficialmente sobre o tema, é, segundo pessoas próximas, favorável a que se dê amplo conhecimento aos estudantes e à população em geral sobre as áreas de risco em Duque de Caxias.

O mapeamento das áreas de risco em todo o Rio de Janeiro foi iniciado pelo DRM em 2010 e identificou pontos vulneráveis em 67 cidades fluminenses, o que colocaria em risco, de acordo com o estudo, cerca de 48 mil pessoas e quase 12 mil casas. O resultado desse mapeamento, segundo o governo estadual, foi levado ao imediato conhecimento das prefeituras de todos os municípios citados.

No que diz respeito a Duque de Caxias, o estudo elaborado pela Regea é bastante detalhado e divide as áreas em três grupos de risco: alto, potencial e iminente. As fotos aéreas e de satélite que compõem o documento dão a dimensão exata do problema e o estudo chega a identificar nominalmente todos os logradouros e casas ameaçadas pelos deslizamentos.

“Como resultado, foram mapeadas 98 áreas de risco no município, sendo que, dentro destas, foram mapeadas 608 moradias em risco e 2.680 pessoas vivendo nessas áreas de risco. Note-se que o relatório diz serem estas áreas (objeto) de risco de deslizamento iminente. O relatório foi entregue pessoalmente ao vice-prefeito Jorge Amoreli por representante do Estado do Rio de Janeiro na minha presença, pouco antes da minha saída do governo municipal”, afirma, em seu blog, o tenente-coronel Ronaldo Reis, ex-chefe da Defesa Civil de Duque de Caxias.

‘Não era prioridade’

Em entrevista à Rede Brasil Atual, Reis confirma que a exoneração foi uma resposta da prefeitura à sua intenção de dar maior publicidade ao estudo sobre as áreas de risco em Duque de Caxias como forma de fortalecer um projeto para a modernização e a compra de novos equipamentos para a Defesa Civil Municipal, o que teria desagradado ao prefeito Zito: “Recebi o relatório do DRM na gestão passada, quando era coordenador da Defesa Civil. Nossa tentativa na época foi exatamente, tendo em vista a gravidade desse relatório, melhorar a Defesa Civil no município. Como fui muito insistente nisso, acabei sendo exonerado pelo prefeito Zito”, diz.

O tenente-coronel acredita que mexeu em um vespeiro: “Fui exonerado porque, com base nesse estudo, quis tirar a Defesa Civil da Secretaria de Segurança Pública, à qual ela era subordinada, para que a gente pudesse ter acesso direto às verbas federais e fazer um melhor planejamento, já que o município enfrentava um problema agudo de falta de verbas”, diz. Reis lamenta a omissão: “Deixaram de fazer pequenas coisas que poderiam ser feitas. Inclusive, no final de 2011 houve uma audiência pública sobre as enchentes na Câmara Municipal, na qual a prefeitura – qualquer um pode ver no youtube – se comprometeu a treinar a população e a fazer um sistema de alarme. Mas não passou da retórica. Se o governante não trata essa questão como prioridade, a coisa não acontece, e a prioridade da antiga gestão não era a Defesa Civil”.

Se o estudo tivesse sido levado em conta, avalia Reis, a tragédia de Xerém teria sido evitada: “A importância da identificação das áreas de risco é que você tem condições de criar um sistema de alerta e alarme. Em Xerém, teria sido muito mais simples se a Defesa Civil pudesse ter chegado antes para fazer uma retirada da população. Outra solução simples seria o sistema de sirenes utilizado pela prefeitura do Rio, que tem um radar que consegue avisar com até três horas de antecedência sobre a chegada de nuvens e precipitações. Essas pessoas teriam condições de deixar suas casas a tempo e de levar alguns pertences mais valiosos. Isso sem falar na perda de vidas. Mas isso infelizmente não foi feito na gestão passada”, diz.

Nova Defesa Civil

Logo após as chuvas que castigaram Xerém, o prefeito Alexandre Cardoso anunciou verbas emergenciais de R$ 35 milhões para a reconstrução das casas, a recuperação das áreas atingidas e o pagamento de uma indenização social aos moradores. O acordo foi feito com o Ministério da Integração Nacional e facilitado pelo trânsito do prefeito junto ao ministro Fernando Bezerra, já que ambos são integrantes da direção nacional do PSB: “A verba indenizatória, no entanto, não será suficiente para resolvermos esse problema. É preciso retirar as pessoas das áreas de risco para que novos desastres não aconteçam, mas isso é muito difícil”, disse Cardoso.

Para tornar as coisas mais fáceis, o primeiro passo foi fortalecer a Defesa Civil Municipal: “Já estamos trabalhando na condição de Secretaria Municipal. Isso potencializa, e muito, as ações de Defesa Civil no município. Tanto em termos de contingente, devido à estrutura, como também pela relação direta com o chefe do Poder Executivo, que é o prefeito. Isso aumenta nossa capacidade de proteção e defesa da população e otimiza as nossas ações, pois elas se tornam mais velozes”, diz o tenente-coronel Silva Costa.

O novo secretário já faz planos com o reforço orçamentário que o órgão deverá receber: “Não agora, pois o Orçamento ainda faz parte da transição da gestão passada, mas no futuro teremos condições de melhorar a questão orçamentária. Isso vai nos ajudar a desenvolver mais projetos de prevenção de desastres e preparação das comunidades”.

Silva Costa prefere não se alongar sobre o fato de o estudo das áreas de risco em Duque de Caxias não ter sido aplicado pela gestão anterior: “Nós estamos agora saindo de uma crise, que foi o primeiro desastre logo no comecinho do ano. Então, como secretário, eu ainda estou tomando pé da composição administrativa da secretaria e também dos projetos que já estão em andamento desde o governo anterior”, diz.

A aplicação do estudo sobre as áreas de risco daqui para a frente não está descartada pelo atual governo: “Já existe um plano muito importante, que é o Plano Municipal de Risco de Desastres. A execução desse plano estava parada, por razões que eu não sei precisar, mas já identificamos que ele tem um forte potencial para avançar. Coloquei técnicos da Defesa Civil para identificarem o motivo de o plano estar parado. Uma vez identificado isso, vamos ver se existem condições de prosseguir nesse projeto. A ideia e a proposta são muito válidas e, mesmo que não possamos prosseguir com o contrato firmado na gestão anterior, vamos buscar parceiros para poder prosseguir”, diz.

Atlas

Segundo denúncia feita por servidores da Secretaria Municipal de Educação ao jornal carioca O Dia, o estudo elaborado pela Regea sobre as áreas de risco no município seria divulgado em detalhes – incluindo os endereços das casas ameaçadas – no Atlas Escolar de Duque de Caxias lançado no ano passado, mas essa divulgação teria sido “desaconselhada” pela prefeitura. Quando o livro foi editado, apesar da contrariedade da equipe acadêmica que coordenou o projeto, nele foi incluída apenas uma indicação das áreas de risco em um mapa apresentado em uma escala que, seguindo a orientação dada pela prefeitura, não permitia a identificação de ruas e logradouros pelos leitores do Atlas.

Procurada pela Rede Brasil Atual para se posicionar sobre a eventual divulgação futura do estudo sobre as áreas de risco pela prefeitura nas escolas da rede municipal, a secretária Marluce Gomes disse que ainda precisa se inteirar melhor sobre o conteúdo do Atlas: “Esse Atlas foi feito na gestão passada e a atual gestão ainda não tem conhecimento do estudo. Eu conheço o professor André Tenreiro, que fez o Atlas, mas não tenho o conteúdo, a propriedade e a dimensão do estudo realizado. Em tudo o que eu disser agora, não terei o aprofundamento necessário. Tenho o Atlas comigo e ainda vou estudar esse assunto, que é muitíssimo interessante e realizado por um professor muito estudioso deste tema”, diz.

Ciente do problema envolvendo o Atlas, o tenente-coronel Ronaldo Reis aponta o que considera ser o principal motivo da não divulgação do estudo nas escolas na gestão anterior: “A partir do momento em que você entrega um relatório desses ao poder público e ele, por inércia ou negligência, não faz nada e depois acontece alguma coisa, o cidadão poderá questionar até mesmo juridicamente. O estudo estava pronto e se sabia inclusive quais eram as ruas. Não havia dificuldade em se fazer um trabalho de prevenção e alerta, mas essa não era a prioridade do prefeito. Eu sofri isso na carne. Apresentei projetos, mas não tive da prefeitura contrapartida financeira nem apoio político para, por exemplo, conseguir alguma verba para a Defesa Civil Municipal em Brasília ou fazer uma Parceria Público-Privada (PPP)”.

Procurado pela reportagem, o ex-prefeito Zito não foi localizado até o fechamento desta matéria.