Saneamento avança, mas esgoto a céu aberto ainda é realidade em São Paulo

Sabesp argumenta que não pode realizar obras de coleta em áreas ocupadas indevidamente. Plano Diretor, que completa 10 anos, previa regularização fundiária de favelas

Moradores da Fazendinha convivem com focos de doença na porta de casa. Situação só não é pior devido aos gatos (Foto: Danilo Ramos/RBA)

São Paulo – Assim como no Antigo Egito, os gatos são cultuados na Fazendinha, um bairro de dois mil barracos de madeira ou alvenaria na região da Brasilândia, zona norte de São Paulo. Mas diferentemente de lá, os “gatos” daqui atendem às preces dos moradores por garantirem sua necessidade mais básica: a água. Ela chega de uma adutora vizinha graças a pequenos canos de plástico que emergem e submergem do chão de terra até cada torneira e chuveiro improvisado no que as pessoas chamam de casa.

“Cada um faz do seu jeito. A Sabesp já veio muitas vezes, já mediu, já pegou nossos nomes. Mas nada aconteceu até agora”, diz a líder comunitária Maurete Gomes Pires, enquanto combate o efeito causado pela poeira das vielas ressecadas com um copo de água gelada – mais uma benfazeja dos “gatos”. Só que, na Fazendinha, milagre tem limite: a água chega bem de manhãzinha, antes das sete, ou só depois das dez da noite. No resto do tempo as pessoas se viram com baldes. “Já estão acostumadas”, se conforma. O cheiro e a vista também mostram que o improviso não consegue resolver tudo: a pestilência é parte do dia a dia, e o esgoto corre entre portas e janelas serpenteando morro abaixo.

As estatísticas mais recentes mostram que o saneamento básico é bastante precário no país, mas nem tanto na cidade de São Paulo. O último ranking do Instituto Trata Brasil – que anualmente classifica os cem maiores municípios brasileiros quanto a distribuição de água, coleta de esgoto e tratamento de efluentes – colocou a capital no 18° lugar. Não é o mundo ideal, porém a situação progrediu nos últimos dez anos. Menos na Fazendinha.

Aprovado pelos vereadores e sancionado pela prefeita Marta Suplicy, em 2002, o Plano Diretor Estratégico (PDE) de São Paulo determinou que até 2012 o poder público deveria prestar aos cidadãos um serviço de abastecimento de água melhor e mais regular – e atingir cada vez mais gente. Deveria também reduzir a quantidade de água que se perde em encanamentos velhos e ligações clandestinas, além de ampliar a coleta de esgoto e encaminhá-lo às estações de tratamento.

Avanços

Embora a cidade ainda não tenha universalizado um direito tão básico, e ainda haja paulistanos obrigados a conviver com córregos imundos e enfermiços ao alcance dos pés descalços, os objetivos previstos pelo plano diretor, em partes, foram cumpridos. “São Paulo está melhorando”, avalia Édison Carlos, presidente do Instituto Trata Brasil. “O grande desafio agora é aumentar o tratamento de esgoto e diminuir as perdas de água.”

“O que melhorou muito foi a coleta”,  continua Édison. “Em 2003, a Sabesp recolhia o esgoto de 87% dos domicílios paulistanos. Em 2010 passou para 96%.” A ideia da companhia é universalizar – nas áreas regularizadas – o recolhimento de esgoto em 2015, meta que o presidente do Instituto Trata Brasil acredita ser perfeitamente viável.

De acordo com os números da Sabesp, repassados anualmente para o Sistema Nacional de Informações sobre o Saneamento Básico (SNIS) do Ministério das Cidades, a capital paulista praticamente universalizou a distribuição de água à população: os dados oficiais dizem que 100% das residências são atendidas pela rede. Não é de todo verdade, porque a 20 quilômetros da Praça da Sé uma parte da Brasilândia vive no século 21 como nos anos 1940. Mas a empresa tem lá suas desculpas: apenas as áreas de ocupação irregular são carentes do serviço.

Sem água encanada, moradores da Fazendinha se viram com baldes e mangueiras (Foto: Danilo Ramos/RBA)

A Sabesp se diz impedida pelas legislações civil e ambiental de atuar em áreas cuja situação fundiária não esteja em ordem, e argumenta que está sujeita à fiscalização constante dos órgãos competentes. A Fazendinha, nascida de um golpe imobiliário que vendeu terrenos sem escritura, é um desses lugares. “Em janeiro entramos em contato com a prefeitura de São Paulo e fomos informados de que não é possível autorizar a implantação de redes de água e esgoto no local, por se tratar de um terreno particular”, informa a empresa.

Desafios

O tratamento, porém, enfrenta desafios menos modestos, até porque neste quesito a cidade não evoluiu como se esperava. Em 2005, apenas 44% de todo o esgoto gerado em São Paulo passava por algum tipo de tratamento. “Hoje tratamos 54%”, pontua Édison. “Foi um progresso, mas ainda assim é só um pouco mais da metade.”

Outra deficiência da capital são as perdas de água nas redes de distribuição, aí incluídas as ligações clandestinas – como na Fazendinha. A cada 100 litros de água produzidos pela Sabesp na cidade, em média 36 se perdem. Os padrões internacionais toleram um nível de perda máximo de 15%, menos da metade do que se vê hoje em São Paulo. “Estamos dentro da média brasileira, o que é muito ruim”, compara o presidente do Instituto Trata Brasil. “Reduzir o desperdício é um trabalho diário de localizar e corrigir vazamentos e substituir redes antigas, que já estão corroídas, além de zerar o roubo de água.”

No alto do morro, o CEU mostra que o Estado chegou, mas foi embora cedo demais (Foto: Danilo Ramos/RBA)

A Sabesp afirma que está trabalhando, que é uma referência nacional no combate às perdas de água e que, em 2011, já conseguiu aplacar o desperdício registrado pelo sistema de informações do Ministério das Cidades. “Com os investimentos recentes, a companhia conseguiu reduzir suas perdas de faturamento, passando de 32% em 2006 para 25,6% em 2011”, atualiza. “A Sabesp também assinou neste ano um contrato inédito com o governo japonês para investir nas ações antiperdas.” Tóquio é das capitais mundiais com melhor desempenho nesse quesito, com taxas de desperdício de água em torno de 1%.

Édison Carlos afirma que, na fase em que se encontra, o combate às perdas vai consumir muito dinheiro, pois requer o uso de equipamentos tecnológicos capazes de localizar vazamentos sem sair quebrando as ruas da cidade. Por isso, diz o especialista, o desperdício paulistano não será reduzido em tão pouco tempo. “O positivo é que os investimentos são muito grandes na capital”, lembra. “De 2005 pra cá, o menor orçamento anual para o saneamento na cidade foi de R$ 850 milhões, em 2007. Depois, só cresceu, culminando em 2009 com R$ 1,8 bilhão.”

Recursos

Em 2011, a Sabesp investiu R$ 2,4 bilhões nas 363 cidades atendidas pela empresa no estado de São Paulo. “Grandes investimentos fazem com que o avanço ocorra de qualquer jeito”, prevê o presidente do Instituto Trata Brasil. Mas, ressalva, uma efetiva universalização dos serviços e a redução de perdas a um nível aceitável vai ficando mais difícil na medida em que se avança nos níveis de distribuição de água, coleta e tratamento de esgoto.

Maurete, a líder comunitária, quer urbanização ou transferência para um lugar melhor (Foto: Danilo Ramos/RBA)

“Aí você precisa atacar os pequenos gargalos, e um deles são as áreas de ocupação irregular”, diz. “Se São Paulo quiser resolver de vez o problema da água e do esgoto, tem de melhorar a situação das represas e remover famílias das áreas de mananciais. Para isso, vai precisar de um grande esforço do governo estadual e uma parceria estreita com o Ministério Público, porque não são medidas simples. É o grande passo que falta pra capital.”

Deixar seu barraco na Fazendinha não está nos planos de Maurete, a líder comunitária desse pedaço esquecido da Brasilândia. Mas, casada e mãe de um menino de 5 anos, ela não vê grandes problemas em mudar-se da favela, “desde que levem a gente para um lugar melhor”, alerta, oferecendo suas opções para o poder público: “Ou resolvem nosso problema, urbanizam a favela, fornecem água encanada e coleta de esgoto, ou senão tiram a gente daqui mesmo.”  

Além de problemas aparentes e malcheirosos, como as anacrônicas valas de esgoto, São Paulo corre riscos mais graves e imperceptíveis, e que não ficarão restritos aos bairros pobres: desabastecimento. Hoje a cidade consome quatro vezes mais água do que há disponível nas redondezas. “A maior parte dos recursos hídricos vem de fora, e cada vez temos que buscá-los mais longe”, conta. De acordo com Édison Carlos, o próximo alvo da Sabesp para garantir o fornecimento de água à capital é o rio São Lourenço, no Vale do Ribeira.

“Imagina o gasto de dinheiro em consumo de energia elétrica e construção de tubulações… é um sistema enorme pra bombear essa água tão distante. Mas tem que fazer”, comenta. “Existe um risco de escassez porque somos muito dependentes do regime de chuva. Nunca podemos dizer que a cidade está livre de rodízio e restrição do abastecimento. É uma população enorme que depende de água de fora da região.”

A Rede Brasil Atual, a Rádio Brasil Atual e a TVT apresentam esta semana uma série de reportagens sobre os 10 anos do Plano Diretor Estratégico de São Paulo. O que foi implementado, o que ficou de lado, quais os interesses envolvidos no debate. A Rádio Brasil Atual pode ser sintonizada na Grande São Paulo pela frequência 98,9 FM, no Noroeste paulista em 102,7 FM e no litoral paulista em 93,3 FM, ou em nossa página na internet.

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