SP: Plano Diretor teve participação social, mas esbarrou na falta de vontade política

'Tínhamos de chegar aos dias de hoje com uma cidade fundamentalmente diferente da que tínhamos dez anos atrás, mas São Paulo continua mais ou menos a mesma', diz relator do projeto aprovado em 2002

Sem que boa parte do Plano Diretor fosse cumprido pelas últimas gestões, a capital manteve desordem no padrão de ocupação (CC/Marcello di Santo)

São Paulo – Ilustre desconhecido da imensa maioria dos paulistanos, o Plano Diretor Estratégico (PDE) do município completa dez anos de vigência nesta quinta-feira, 13 de setembro, sem que boa parte de suas determinações tenham saído do papel. Com 308 artigos, dez mapas e 15 quadros, o PDE foi elaborado durante a gestão da prefeita Marta Suplicy (PT) com ampla participação social: mais de cem reuniões e audiências públicas se realizaram antes que o Executivo enviasse um projeto de lei à Câmara para apreciação dos vereadores. Mais discussões ocorreram no Legislativo até que o texto fosse definitivamente aprovado, em 2002.

“O PDE é um instrumento indispensável para pensar a cidade”, avalia o ex-vereador Nabil Bonduki, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, que trabalhou como relator do plano diretor paulistano. Em poucas palavras, o PDE é uma lei municipal aprovada pela Câmara e sancionada pela prefeitura. Seu objetivo é organizar o crescimento e o funcionamento da cidade, prevendo metas a serem alcançadas em habitação, saúde, educação, segurança, meio ambiente, transporte, enfim, em todas as áreas da política pública. O plano diretor também orienta as prioridades do investimento governamental e indica quais obras devem ser realizadas, quando, onde e por quê.

Como o próprio nome sugere, o PDE é quem deveria ‘dirigir’ o desenvolvimento do município. No Brasil, os planos diretores passaram a ser obrigatórios para cidades com mais de 20 mil habitantes a partir de 2001, após a aprovação do Estatuto das Cidades durante a gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Por sua vez, o Estatuto das Cidades foi elaborado para regulamentar o capítulo sobre política urbana previsto na Constituição Federal. Trata-se, portanto, de uma determinação legal que se materializou textualmente em São Paulo com 14 anos de atraso. “Era uma obrigação e uma necessidade fazer o PDE”, complementa Bonduki.

Histórico

Quem comandou o processo de elaboração do plano diretor na capital paulista foi o arquiteto Jorge Wilheim, que ao longo de 50 anos passou por diferentes administrações municipais e estaduais e, na época, ocupava a Secretaria de Planejamento da Prefeitura. “O mais desafiador na elaboração de um PDE para São Paulo é o tamanho da cidade, em todos os sentidos: população, espaço e quantidade de problemas”, explica. Wilheim comenta que o PDE de 2002 não foi a primeira iniciativa de planejamento da cidade, mas reconhece que planificação nunca foi o forte da maior metrópole da América do Sul.

Segundo o arquiteto, o primeiro plano diretor propriamente dito que passou a vigorar em São Paulo foi elaborado na gestão do prefeito Faria Lima, que governou entre 1965 e 1969, durante a ditadura. “Ele viu a necessidade de iniciar imediatamente o metrô e planejar os dois grandes vales dos rios Tietê e Pinheiros”, explica, lembrando que na época houve um estímulo importante ao planejamento urbano. “Os militares queriam colocar cada coisa em seu lugar, mas eu vejo o planejamento como uma proposta de futuro, na qual muitas vezes as rupturas são mais importantes que os ajustes, e a criatividade e as decisões políticas são fundamentais.”

Jorge Wilheim afirma que, mais tarde, outras discussões sobre o plano diretor ocorreriam dentro dos governos municipais de Mário Covas (1983-1985) e Jânio Quadros (1986-1989), mas sem que o debate se traduzisse em um planejamento efetivo da cidade. O arquiteto participou de ambos processos, e lamenta que a proposta de Covas não tenha sido aprovada pela Câmara por pura falta de entusiasmo do prefeito. “Ele não acreditava no planejamento”, lembra. O projeto de Jânio, sim, foi colocado em prática, mas o texto fora escrito dentro dos gabinetes, sem qualquer debate público, e não teve grandes consequências.

“De 1988 até a gestão da prefeita Marta Suplicy, nada mais foi feito em planejamento, a não ser correções pontuais ao sabor do mercado imobiliário”, contextualiza Wilheim, avaliando que a formulação do PDE de 2002 se traduziu num movimento de ‘saída para fora’ das secretarias municipais: durante quatro anos, os técnicos da prefeitura tiveram de ir às ruas e ouvir a população, organizações da sociedade civil e grupos empresariais. “Foi uma época de muito entusiasmo”, recorda.

O atual presidente do Movimento Defenda São Paulo, Heitor Marzagão, foi uma das pessoas que tomaram parte nas audiências públicas e acompanharam de perto a construção do plano diretor. “Foi uma experiência nova, estávamos todos aprendendo, inclusive a prefeitura”, analisa, ressaltando o nível de participação, a quantidade de reuniões e a informação de qualidade que foi prestada pelo poder público para embasar as discussões. “Não é um plano tão bom quanto poderia ter sido, mas foi o que conseguimos fazer.”

Regulamentação

Jorge Wilheim

Jorge Wilheim lamenta, porém, que a estrutura jurídica brasileira seja perniciosa ao permitir que uma lei discutida e aprovada pelas câmaras legislativas tenham de ser posteriormente regulamentadas pelo Executivo, por meio de decreto. “Se algum prefeito não quer fazer com que uma lei vingue, ele simplesmente deixa de regulamentá-la e a lei vira letra morta”, critica. “Houve mais ou menos 30 artigos do PDE que até hoje não saíram do papel por simples falta de regulamentação da prefeitura.”

Nabil Bonduki argumenta na mesma linha. “A implementação do plano diretor ficou muito aquém do necessário”, concorda. “Tínhamos de chegar aos dias de hoje com uma cidade fundamentalmente diferente da que tínhamos dez anos atrás, mas São Paulo continua mais ou menos a mesma.” O relator do PDE recorda que um dos objetivos mais importantes da lei aprovada em 2002 era reverter o processo de esvaziamento populacional do centro construindo unidades habitacionais para famílias de baixa renda.

Isso ajudaria a resolver um dos problemas mais graves da cidade: a concentração de empregos nos bairros centrais aliada à ampliação de moradias nas zonas periféricas, o que obriga a parte significativa dos paulistanos passar horas intermináveis no trânsito apenas para se locomover de casa para o trabalho. “Ao propor habitação na área central e planos de desenvolvimento econômico na zona leste, por exemplo, o PDE pretendia romper essa desigualdade. E isso não foi alcançado.” Muito pouco foi feito também no transporte: de 2005 para cá não se construiu um corredor de ônibus sequer, e muitos estavam previstos.

“A administração atual tomou como ponto de partida não dar continuidade a muitas políticas e projetos herdados da administração Marta Suplicy”, pontua Bonduki. “Em alguns casos, como o da habitação social no centro, as gestões de José Serra e Gilberto Kassab tinham uma visão bastante diferente da prefeitura anterior. Tanto que demoliram dois edifícios vazios na região, o São Vito e o Mercúrio, em vez de reformá-los e destiná-los a famílias de baixa renda.”

Nem mesmo a revisão do plano diretor, que deveria ter sido feita em 2006, ocorreu – e graças ao prefeito José Serra (2005-2006). “Em vez de revisar e aprimorar o que já existia, Serra tentou fazer um novo plano e acabou sendo barrado pelo Ministério Público”, explica Jorge Wilheim. Organizações da sociedade civil e movimentos populares também se mobilizaram para frear, juntas, os anseios do prefeito tucano. Como resultado, São Paulo ficou com o PDE de 2002 intacto até hoje, com inevitáveis desatualizações.

Dez anos depois, é sóbrio o balanço feito por Jorge Wilheim sobre uma de suas mais importantes criações urbanísticas. “Minha maior satisfação é que o plano diretor perdura como lei: ele vale, conduz, conseguiu resultados positivos e trouxe inovações. O que me frustra, porém, é que o processo de planejamento foi paralisado”, pondera.

“O passo seguinte era formular planos diretores para cada subprefeitura da cidade, nos quais a população teria participação ainda maior. É no bairro onde muitos aspectos da qualidade de vida conseguem ser resolvidos: calçadas, pequenas praças, lixo, uma porção de coisas que são superficiais, mas ainda assim muito importantes no cotidiano das pessoas.” Desde então, apenas a região de Perus, na zona norte, conseguiu elaborar e aprovar na Câmara um PDE próprio.

A Rede Brasil Atual, a Rádio Brasil Atual e a TVT apresentam esta semana uma série de reportagens sobre os 10 anos do Plano Diretor Estratégico de São Paulo. O que foi implementado, o que ficou de lado, quais os interesses envolvidos no debate. A Rádio Brasil Atual pode ser sintonizada na Grande São Paulo pela frequência 98,9 FM, no Noroeste paulista em 102,7 FM e no litoral paulista em 93,3 FM, ou em nossa página na internet.

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