Investimentos públicos em São Paulo beneficiam interesses privados, afirma urbanista

Na visão de especialista em desenvolvimento urbano, as operações urbanas destinadas a reorganizar a capital paulista são ferramentas para expansão imobiliária

Corredor comercial da Luz, centro de São Paulo. Intervenções públicas feitas sem consulta à comunidade (Foto: Arquivo RBA)

São Paulo – Para o arquiteto e urbanista Kazuo Nakano, do Instituto Pólis, a prefeitura de São Paulo cria políticas públicas para reforçar as ações do mercado imobiliário. O ideal, apontou o especialista, seria usar essas políticas para organizar a cidade e corrigir distorções produzidas pelo mercado.

As operações urbanas consorciadas que a prefeitura realiza em várias regiões da cidade – destinadas a reorganizar os espaços na capital paulista – seriam formas de alavancar e reforçar os interesses imobiliários. “Você tem um desequilíbrio grande entre benefício público e investimento público. O investimento público deveria atender o benefício público. E acontece o contrário porque o investimento público beneficia mais o interesse privado e não o público”, disse o urbanista.

Nakano critica o uso desse tipo de política pública para preparar o terreno para empresas do ramo imobiliário atuarem. “Os impactos são mais negativos que positivos. O que é grave é que, nessas áreas, o projeto urbanístico que deve servir como base de reestruturação é um projeto muito medíocre, porque ele se restringe a um plano viário na área da operação urbana. É a abertura de avenidas, construção de pontes… Não amplia, nem melhora a oferta de espaço público. Não conecta isso com transporte de massa, não tem previsão de oferta de equipamentos comunitários públicos. Moradia de interesse social é irrisória”, explicou.

O especialista propõe a criação de um “banco de terras públicas” para garantir o atendimento de necessidades sociais. “A gente abandonou esse tipo de política há muito tempo e isso tem sido muito prejudicial.”

Acompanhe na íntegra a entrevista do urbanista à Rede Brasil Atual:

RBA – Para que tem servido as operações urbanas em São Paulo?

Em São Paulo, as operações urbanas têm servido para fortalecer e reforçar o fenômeno de valorizar e revalorizar áreas urbanas abrindo frentes de investimentos imobiliários realizados pelo mercado imobiliário. Elas têm funcionado como alavancagem para abrir áreas que possam ser de interesse imobiliário. Foi assim nas regiões da Faria Lima, da Água Espraiada e da Água Branca.

Então, se você pegar essas áreas, a Faria Lima na década de 1960, aquilo era um pântano. O processo de investimento público com abertura de avenidas, drenagem da área foi criando oportunidades para o investidor imobiliário. Além de ser área que não tinha boas condições de acesso, tinha a favela do Jardim Edith, onde moravam 40 mil pessoas ao longo do córrego inteiro. Uma boa parte foi removida para construir a avenida Água Espraiada (atual Roberto Marinho), canalizar o córrego. Também foi fator de geração de vantagens ali no local para o investidor privado.

Na Água Branca, isso foi mais difícil porque é uma área que inunda e está mais perto do centro da cidade. Esta mais distante dessas áreas de interesse do mercado, mas com os investimentos públicos que vêm sendo feitos desde a construção do Memorial da América Latina, foi se criando ali vantagens e interesse para o investidor privado.

Agora, com todas as iniciativas no centro histórico, onde já tem infraestrutura, tem transporte, teve investimentos em metrôs, equipamentos culturais, melhorias no espaço público, dinâmica econômica no Brás, no Bom Retiro, essas áreas também passam a ser interessantes para o investidor. Por mais difícil que seja, porque são áreas que são antigas, já têm urbanização consolidada, mesmo assim é vantajoso para o investidor tentar ocupar lotes, terrenos e fazer empreendimentos lá.

A movimentação que os moradores já percebem no Brás – onde haverá no futuro uma operação urbana, a Lapa-Brás –, com o valor dos imóveis subindo rapidamente, já é indício da especulação imobiliária no local?

Já. O que a gente já vê em outras partes do centro também, como o Bom Retiro.

A prefeitura funciona como uma empresa que prepara o caminho para o mercado imobiliário?

Exatamente. No caso das operações urbanas e de outras ações da prefeitura, nos últimos dez anos tem sido assim. Em qualquer cidade mais organizada, o poder público faz política pública, regulação pública para corrigir as distorções do mercado. Política pública serve para isso, para a gente corrigir essas distorções produzidas pelo mercado.

Mas na política urbana e habitacional de São Paulo acontece o contrário. A política pública reforça o mercado. E não é só municipal, porque está acontecendo em escala nacional. Até o Minha Casa Minha Vida tem gerado esse tipo de situação.

As operações urbanas revertem-se em benefícios para a população?

Muito pouco. Os impactos sociais no caso da operação Água Espraiada ficaram muito claros. Mesmo a prefeitura fazendo aquele conjunto habitacional para 250 famílias, foram removidas 40 mil pessoas.

Os impactos são mais negativos que positivos. O que é grave é que como nessas áreas o projeto urbanístico, que deve servir como base de reestruturação desse trecho da cidade é um projeto muito medíocre, porque ele se restringe a um plano viário na área da operação urbana. É abertura de avenidas, construção de pontes… fica um projeto urbano muito medíocre. Não amplia, nem melhora a oferta de espaço público. Não conecta isso com transporte de massa, não tem previsão de equipamentos comunitários públicos. Moradia de interesse social é irrisória.

Você tem um desequilíbrio grande entre benefício público e investimento público. O investimento público deveria atender o benefício público. E acontece o contrário porque o investimento público beneficia mais o interesse privado e não o público.

As áreas em que ocorrem operações urbanas foram escolhidas pelo mercado?

Na verdade, é o mercado e a prefeitura juntos, porque desde a operação urbana Faria Lima até a Água Espraiada, na época era o governador Paulo Maluf que estava na prefeitura e ele já definia isso junto com o mercado.

É a articulação entre prefeitura e o mercado imobiliário que vai definido quais são as operações urbanas que são mais prioritárias, que vão ser trabalhadas. Geralmente são áreas que o mercado já tem interesse, em que já está fazendo investimentos.

A prefeitura está licitando empresas para desenvolverem o projeto urbanístico, mas os moradores ouvidos na região do Brás dizem que até agora não foram consultados sobre o futuro do bairro.

Isso vai ser decidido junto com a empresa que vai conduzir a elaboração do projeto. Se vão adotar processo participativo de consulta pública ampla, além das audiências públicas porque se costuma fazer nessas operações urbanas algumas audiências públicas que não dão conta de fazer o processo participativo de verdade.

Então, vai depender muito de quem estará conduzindo o processo. A realidade aqui em São Paulo é que se faz um projeto que de fato se resume a ajustes, complementação, ampliação de área e uma definição de estoque de potencial construtivo que resulta em um estudo de volumetria de prédios nos terrenos, no interior das quadras e ponto, não é um projeto urbano de verdade.

Porque esse é um problema que a gente tem nos nossos projetos urbanos, porque não temos grandes instrumentos, além da desapropriação, que incida na estrutura fundiária privada. A gente não tem o hábito e não tem alcance de mudar as condições no interior das quadras porque são imóveis privados e para você mexer nisso é sempre muito caro e sempre muito difícil.

O “Nova Luz” – projeto de requalificação da prefeitura no bairro da Luz que pretende transferir o bairro para administração privada – é o primeiro projeto urbano que começou a incidir nessa esfera privada, no interior das quadras, mas por meio da concessão urbanística e da desapropriação que gerou grande tensionamento e oposição ao projeto.

Como se aproveita melhor os espaços da cidade de uma forma humana, pensando nas pessoas, sem expulsar quem já mora na região e com melhorias para quem chega? No caso do Brás, que vai receber uma nova operação urbana, trata-se de um dos bairros mais impermeabilizados da cidade, onde os moradores reclamam da falta de segurança, iluminação e limpeza.

Tem de ter critérios para licenciar esses projetos. Mas, a gente vê pelas últimas notícias que os nossos processos de licenciamento de empreendimentos estão muito falhos. O licenciamento de novos empreendimentos na cidade virou uma balbúrdia, uma baderna.

Acho que tem um critério básico para fazer um grande projeto urbano que melhora a vida das pessoas e não só encara a cidade como um negócio imobiliário, que é o modo, o processo como você vai desenvolver esse projeto. Não dá para ser um projeto feito por um conjunto de técnicos urbanistas trancados numa sala.

A grande falha do projeto “Nova Luz” foi essa. Como é que você vai fazer um projeto que prevê desapropriação, que começa na rua Santa Ifigênia e não discute com os comerciantes da Santa Ifigênia e cria o que criou.

Quando você tem um processo participativo de verdade, não só audiência pública a gente poderia discutir uma série desses desdobramentos e se definiria uma agenda e um programa para esse projeto urbano, que considere as pessoas, as suas vidas e o seu bem-estar.

As operações urbanas na capital são precedidas por aumento no valor da terra. Que proteção, que políticas sociais podem ser desenvolvidas para proteger a população mais carente e evitar distorções do mercado?

Tenho defendido muito que a prefeitura faça um “banco de terras públicas”, terras urbanas, ter uma política de aquisição de terras. Nessas áreas de grandes projetos urbanos, para garantir o atendimento a outras necessidades sociais. A gente abandonou esse tipo de política há muito tempo e isso tem sido muito prejudicial. A produção de novas moradias populares tem sido muito baixa na cidade, justamente porque a prefeitura não tem mais terra.

A prefeitura compraria de particulares e manteria em cada região um estoque para construção de habitação popular?

Hoje a gente tem vários tipos de instrumentos, não só a compra e a desapropriação que são muito demorados e muito caros para a prefeitura. Há  uma série de instrumentos que podem ajudar a prefeitura a acessar as terras urbanas nessas áreas de grandes projetos urbanos, sem precisar gastar muito.

Não só a população mais carente reclama de estar sendo expulsa. Já se vê uma classe média espremida reclamar porque uma kitnete pode chegar a R$ 300 mil em São Paulo.

Porque o nosso mercado, primeiramente, não alcança uma boa parte da nossa sociedade. Nosso mercado imobiliário é muito restrito e muito excludente porque as margens de lucro dos agentes do mercado imobiliário, sempre são muito altas e eles se recusam a produzir para uma taxa de renda mais baixa, porque vai significar menor margem de lucro, principalmente nas terras mais valorizadas.

Os moradores individualmente podem dizer: “não, eu não vou comprar imóveis a esse preço, porque esta não é a realidade”?

Não dá, porque atitudes individuais não adiantam, porque foi isso que gerou a periferia, é fruto de política pública. O que aconteceu foi o seguinte: uma boa parte da população que não podia acessar moradia no mercado formal, teve de acessar moradia no mercado informal, nas favelas, nos terrenos clandestinos, nas periferias.

Tanto que você vai aos bairros populares, você vê funcionário público, policial militar. Você não tem famílias de extrema pobreza só. Hoje você tem famílias que têm condições, nível de renda, que se tivesse um mercado imobiliário mais amplo, poderiam acessar moradia em melhores locais e em melhores condições, mas esse nosso mercado ainda está muito restrito.

O “Minha Casa, Minha Vida” fez esse esforço de tentar ampliar a atuação do mercado para as pessoas de classe média baixa e baixa renda. Dado o aumento do preço das terras, a produção dos conjuntos habitacionais do “Minha Casa, Minha Vida” está acontecendo nas áreas periféricas, às vezes fora da cidade.

Quem tem um nível de renda de classe média baixa, não tem ido morar nesses conjuntos habitacionais porque eles estão literalmente fora da cidade, na área rural. É uma equação complexa, porque você tem que juntar financiamento, produção imobiliária, nível de renda da população e preço da terra. É isso que é planejar, é isso que é fazer regulação pública do processo de urbanização.

Operações urbanasem São Paulo

  • Atualmente, são quatro as operações urbanas consorciadas em andamento na capital paulista: Centro, Água Espraiada, Faria Lima e Água Branca. Outras três estão em processo de licitação: Lapa-Brás, Mooca-Vila Carioca e Rio Verde-Jacu Pêssego.
  • A operação Faria Lima, uma das mais antigas, já causou a retirada de mais de 40 mil pessoas da região e reação de quem morava no local. Na operação urbana Centro, da qual faz parte o projeto Nova Luz, que pretende transferir à iniciativa privada a administração e o direito de desapropriar e negociar imóveis na região da Luz, moradores e comerciantes da Santa Ifigênia rejeitam a iniciativa da prefeitura. A principal crítica diz respeito à falta de diálogo da prefeitura com moradores, privatização do bairro e desapropriação e demolição de quase 50% dos imóveis. A licitação do bairro para uma empresa privada está prevista pelo poder público municipal até o meio deste ano.
  • Na região do Jabaquara, as obras da operação urbana consorciada Água Espraiada serão responsáveis pela saída de cerca de 8,5 mil famílias na região. No traçado original, de 2001, o túnel teria 400 metros, com 500 desapropriações no lugar das cerca de duas mil previstas atualmente. As alterações propostas por Kassab e aprovadas pela Câmara Municipal de São Paulo em 2011 aumentaram em quase cinco vezes o tamanho do túnel. O parque previsto saltou de 130 mil metros no projeto inicial para 600 mil metros no atual. A nova conformação do projeto criou nova área para desapropriações. Também estão previstas remoções de cerca de 7 mil famílias que vivem em comunidades da região.

Colaborou Vanessa Ramos

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