Na gestão Serra-Kassab, estruturas públicas são adequadas ao setor imobiliário

Concessão de bairros ao setor privado, criação de secretarias para incentivar repasse de espaços a construtoras e decretos para facilitar desapropriações marcam os últimos oito anos da administração paulistana

Bairro da Luz, centro da capital, passa por “privatização”, para atender a interesses de especulação imobiliária (Foto: Mauricio Morais/RBA)

São Paulo – A abertura de frentes de expansão para o mercado imobiliário na cidade de São Paulo foi acompanhada por uma reorganização das estruturas da administração municipal ligadas à distribuição das obras e dos espaços urbanos.

As mudanças começaram em 2005, durante o governo de José Serra (PSDB), que tinha como vice o atual prefeito, Gilberto Kassab (PSD), responsável por intensificar as mudanças em 2009, começo de seu segundo mandato. A principal alteração foi a criação, em 7 de janeiro de 2009, da Secretaria de Desenvolvimento Urbano, que passou a controlar a política de uso e ocupação do solo na maior cidade brasileira “explorando as parcerias com a iniciativa privada e com outras esferas de governo”. Em outras palavras, trata-se da estrutura que abarca as principais operações de transformação do cenário da cidade.

“A criação da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano, do meu ponto de vista, foi para viabilizar grandes projetos urbanos na cidade”, diz o arquiteto e urbanista Kazuo Nakano, do Instituto Pólis. “As obras e os grandes projetos urbanos servem para que os circuitos imobiliários se reapropriem de trechos dessa mesma cidade.”

Comandada pelo engenheiro Miguel Luiz Bucalem, companheiro de Kassab no curso de Engenharia da Faculdade Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), a secretaria abriga dentro de sua estrutura a São Paulo Urbanismo (SPUrbanismo), também criada em 2009, e que tem em seus quadros antigos integrantes de construtoras e do Secovi, o sindicato da habitação, interessado na valorização dos imóveis na capital paulista. A SPUrbanismo, como é mais conhecida, é a gestora das operações urbanas, que são intervenções diversas voltadas, oficialmente, a reorganizar o espaço da cidade.

Atualmente, são quatro as ações do gênero em curso: Centro, Água Espraiada, Faria Lima e Água Branca. Outras três estão em processo de licitação: Lapa-Brás, Mooca-Vila Carioca e Rio Verde-Jacu Pêssego. Desde 2009, são R$ 2,749 bilhões recebidos por Camargo Corrêa, Engeform, OAS, Carioca Nielsen, Santa Bárbara e outras. Essas operações são responsáveis também por, ao realizar obras, promover a remoção de famílias vulneráveis economicamente e sua remoção para a periferia ou a outras cidades.

Em duas das operações urbanas, a Água Espraiada e a Água Branca, a escassez de terrenos para fins imobiliários levou a prefeitura a lançar mão da emissão de Certificados de Potencial Adicional de Construção (Cepacs). Trata-se, basicamente, do lançamento de títulos comercializados em bolsa para que os interessados em construir em áreas nas quais os limites legais já tenham sido ultrapassados possam fazê-lo.

A prefeitura lucra com a arrecadação dos Cepacs, e as construtoras ganham acesso a terrenos em áreas ultravalorizadas. Em troca, a administração municipal deve realizar obras nas regiões compreendidas pela operação urbana correspondente, valorizando o metro quadrado. “Kassab já tem uma origem no mercado imobiliário. É do interesse profissional e econômico dele”, diz Nakano. “Esse capital imobiliário faz políticos, posiciona seus representantes na máquina.”

Uma questão envolvendo a Água Espraiada chamou a atenção do promotor Maurício Ribeiro Lopes, de Habitação e Urbanismo, que em janeiro ingressou com ação contestando a aplicação das verbas obtidas por meio de Cepacs. A construção de um túnel de 2,35 mil metros, no valor de R$ 3 bilhões, ligando a avenida Jornalista Roberto Marinho – antiga avenida Água Espraiada – à rodovia dos Imigrantes se valia desta arrecadação, mas 78% da área da obra estava fora do perímetro de abrangência da operação. O projeto enfrenta protestos de moradores, temerosos com as remoções, e prevê, além do túnel, um parque linear de 600 mil metros. “Quanto desse dinheiro poderia ser destinado para a construção de moradias, que faltam de maneira absurda na cidade?”, indaga Ribeiro Lopes.

As obras serão responsáveis pela saída de cerca de 8,5 mil famílias na região. No traçado original, de 2001, o túnel teria 400 metros, com 500 desapropriações no lugar das cerca de duas mil previstas atualmente. As alterações propostas por Kassab e aprovadas pela Câmara Municipal de São Paulo em 2011 aumentaram em quase cinco vezes o tamanho do túnel. O parque saltou de 130 mil metros no projeto inicial para 600 mil metros no atual. A nova conformação do projeto criou nova área para desapropriações. Também estão previstas remoções de cerca de 7 mil famílias que vivem em comunidades da região.

Irmãs separadas, mas unidas por um ideal

A SPUrbanismo tem uma irmã da qual se separou em 2009. A São Paulo Obras, ou SPObras, é vinculada à Secretaria de Infraestrutura Urbana, que teve suas atribuições alteradas em 2005 pelo tucano José Serra, depois governador. As duas eram uma só: a Empresa Municipal de Urbanização (Emurb), que deixou de existir por uma intervenção do engenheiro Kassab. Em sua página na internet, a SPObras se jacta de seus valores: “construir a São Paulo do futuro” com base em uma visão de agilidade e competência, sendo uma “viabilizadora de obras e projetos”.

Para viabilizar obras e projetos, a autarquia passou a contar em 2009 com a Lei 14.917, que abre a possibilidade de privatização de bairros paulistanos. “Concessão urbanística é o contrato administrativo por meio do qual o poder concedente, mediante licitação, na modalidade concorrência, delega a pessoa jurídica ou a consórcio de empresas a execução de obras urbanísticas de interesse público”, reza a lei. A eventual concessionária ganha o poder de desapropriar imóveis e mudar a bel prazer o traçado de ruas e avenidas, promovendo, para isso, a demolição das edificações que se encontrem pelo caminho.

O primeiro bairro a sofrer com esse tipo de medida é a região que reúne áreas históricas e um comércio efervescente – Luz e Santa Ifigênia. O termo “cracolândia”, que virou sinônimo de degradação, foi propagado pelo então subprefeito da Sé e Secretário de Coordenação das Subprefeituras (2005 a 2009), Andrea Matarazzo, que chegou a afirmar que a “cracolândia deve ser posta abaixo, porque é apenas um antro que atrapalha o funcionamento da cidade”.

Em documento oficial da prefeitura, produzido por essa secretaria em 2007, a região é apresentada como uma “mancha negra que irradia degradação”. O documento propõe que a área seja transformada em novo bairro de tecnologia de informação e cultura, com “modernos projetos imobiliários”. A prefeitura, com o argumento de revitalizar uma área que, diz, é dominada por traficantes, chamou a operação de “Nova Luz”. 

Um dos principais artífices do projeto, o ex-Secretário Estadual de Cultura, Andrea Matarazzo – que se gaba em sua biografia pela alcunha de “o xerife da cidade”, concedida pela revista Veja, por sua “atuação firme no combate ao comércio ilegal e na preservação do espaço público” – anunciou em março desse ano, quando ainda estava à frente da pasta de Cultura, a construção do Complexo Cultural Nova Luz, que ocupará área de 73 mil metros quadrados e está orçada em R$ 500 milhões. 

Os objetivos da empreitada “Nova Luz” se tornaram mais nítidos quando a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano divulgou o mapa de áreas a serem demolidas. A lista surpreendeu por conter imóveis novos, recém-reformados ou prédios em excelentes condições.

A iniciativa da prefeitura, tocada por uma empresa ou grupo particular, deve durar 15 anos e enfrenta oposição de quem mora e trabalha no local. Um dos receios é de que o bairro se transformará em um canteiro de obras a céu aberto, dificultando atividades comerciais e moradia na região. Outro problema é a expulsão dos atuais moradores e lojistas do local, que serão desapropriados por empresas particulares.

Diversas ações questionam na Justiça a validade das futuras desapropriações porque a legislação brasileira só permite esse tipo de atuação quando realizada pelos poderes públicos municipal, estadual ou federal, em casos muito graves e por motivação social. Em outra frente, contesta-se – e estranha-se – o fato de as leis de autorização da concessão urbanística da cidade ao setor privado e de aplicação do Nova Luz terem ocorrido no mesmo dia.

Colaborou Suzana Vier