Moradores do Jardim Edith conquistam uma das esquinas mais caras de São Paulo

Líder comunitário de 69 anos garantiu na Justiça direito a moradia para parte das 50 mil pessoas retiradas pela prefeitura de área nobre da capital paulista

Depois de perder sua casa, Gerôncio, morador do Jd. Edith, foi à Justiça e conquistou moradia para mais 251 famílias (Foto: Danilo Ramos)

São Paulo – A teimosia de Gerôncio Henrique Neto, acompanhada de sua fé na Justiça, vai levar até o final do ano 150 famílias carentes a ocupar uma das esquinas mais caras da capital paulista: o entroncamento das avenidas Engenheiro Luís Carlos Berrini e Jornalista Roberto Marinho. “É a esquina da riqueza com a mina de ouro”, citou em visita às obras com a reportagem da Rede Brasil Atual.

Ao lado dos apartamentos, Gerôncio e os antigos moradores da região terão arranha-céus novinhos como vizinhos. Os prédios foram erguidos depois da desocupação da comunidade, em 2008, que reunia perto de 12 mil famílias, muitas desde a década de 1970 no local.

“Eles dizem que sou teimoso. Eu só quero o que está previsto na lei da operação urbana: reassentamento no próprio bairro de todos os moradores retirados. Não quero nem mais nem menos”, justificou Gerôncio, pedreiro que estudou até a 3ª série do ensino fundamental e se tornou leitor ávido de leis, regulamentos e livros, principalmente sobre as cidades e o direito à moradia.

O líder comunitário conseguiu apoio da Defensoria, do Ministério Público e de urbanistas para a luta por moradia digna, e garantiu na Justiça, em abril de 2008, liminar determinando que a prefeitura construísse os apartamentos onde a comunidade existiu por mais de 30 anos. “A prefeitura dizia: não tem jeito de construir aí.”

O pessoal da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano – empresa do governo do estado de São Paulo, vinculada à Secretaria da Habitação) me levou para conhecer conjuntos habitacionais que diziam ser ótimos, como no Campo Limpo. Minha resposta não demorava um minuto: ‘Não’”, descreveu. Apesar da pressão para desistir do reassentamento dos moradores do antigo Jardim Edith, ele manteve-se firme.

De acordo com a pesquisadora Mariana Fix, a operação urbana retirou 50 mil pessoas de suas moradias. Apesar de a construção dos apartamentos no mesmo local de onde a população foi expulsa ser uma vitória, representa menos de 1% do necessário. “De um lado é uma vitória, é inegável. Se não fosse a luta dos moradores de lá, nem aquilo seria feito…”, declarou. Entretanto, a quantidade de habitações “é insignificante, comparada ao total de pessoas expulsas de sua comunidade”. Além das 150 habitações que serão entregues este ano, outras 102 estão previstas para reassentar moradores retirados da comunidade do Jardim Edith para a operação Urbana Água Espraiada.

As operações urbanas em vigor em São Paulo se baseiam na venda de potencial construtivo acima do permitido pela legislação. Com o valor pago pelos incorporadores pela exceção, a prefeitura deveria investir na área. Na prática, urbanistas criticam o poder público municipal por realizar melhorias que beneficiam o mercado imobiliário e expulsam a população original das regiões atingidas.

De igual para igual

Em mais de dez anos de debates sobre as alterações urbanas na região, o líder comunitário tornou-se especialista em discutir, de igual para igual, com prefeitos, secretários municipais e técnicos da prefeitura. Ele enfrentou diversos prefeitos que se sucederam ao longo dos sete anos que levou da comunicação das obras em 2001 até a retirada definitiva dos moradores em 2008. “A Marta (Suplicy) garantiu para mim a criação da Zeis (Zona Especial de Interesse Social). Sempre que saía do mapa, eu cobrava dela”, lembrou.

“Com o Serra, a conversa era sobre a construção das moradias. Ele dizia que não ia fazer a alça da ponte para Pinheiros e não ia ter Zeis. Eu respondia: prefeito, o senhor não conhece a operação urbana, com a venda dos Cepacs (Certificados de Potencial Adicional de Construção) você constrói todas as moradias necessárias.”

Depois de inúmeras ações judiciais do poder público municipal contra a determinação da Justiça paulista, um acordo indicou o início da construção das moradias em 8 de setembro de 2008,  mencionou Gerôncio. Mesmo após o acordo, a prefeitura continuou apelando para alterar o local da obra. Até que finalmente, a construção começou no final de 2010.

Com a retirada dos moradores de suas casas em 2008 e a dificuldade em garantir as novas moradias de forma definitiva, foi preciso recorrer novamente à Justiça. A nova empreitada foi em relação ao valor baixo do auxílio-aluguel. Os R$ 300 pagos pela prefeitura foram considerados insuficientes pela Justiça de São Paulo, que arbitrou o valor de R$ 500 em 2008. “Eu acredito na Justiça e faço minha parte levando aos magistrados a realidade da população da cidade”, ensinou o líder comunitário.

Esquina cara

Apesar das sucessivas determinações da Justiça e da aparente concordância da prefeitura, Gerôncio está de novo às voltas com problemas no projeto habitacional. Ele acompanha atento rumores de que a prefeitura não construirá um restaurante-escola, que é parte do projeto, em terreno ao lado dos prédios. “Tem empreiteira que quer todo o quarteirão e o restaurante atrapalha”, alertou. “O restaurante-escola é muito importante na nossa luta por qualificação dos jovens que têm um enorme potencial de trabalho nos hotéis e restaurantes daquela área.”

Se se confirmar mais essa patinada do poder público municipal, lá vai seu Gerôncio, com um pacote de documentos embaixo do braço fininho, para um de seus principais ofícios nos últimos anos: acionar a Justiça para obrigar a prefeitura a cumprir leis que ela mesma criou.

Brejo

Gerôncio chegou à região em 1971, quando tudo era brejo. “Até 2001 ninguém queria saber de lá”, contou. “A região era constantemente atingida por enchentes. A gente ficava quinze dias fora de casa até a água abaixar.” O pedreiro alugou uma casa, que depois reformou e perdeu para a operação urbana Água Espraiada. “Quando a prefeitura fez algo pela área, foi para nos tirar de lá”, lamentou.

A poucos meses da entrega das obras, os apartamentos de 50 metros quadrados já chamam atenção porque se trataria de uma nova forma de construir habitações populares. Mas, se não fosse a crença de Gerôncio na Justiça e sua teimosia, “pouco ou nada seria feito”, apontou.