Bolivianos em São Paulo fazem festa ao “deus da abundância”

Oferendas para a realização de sonhos materiais mobilizam imigrantes em São Paulo na festa de Alacitas, em homenagem ao deus Ekeko

Yatiris não crescem em árvores, muito menos em São Paulo: são raridade, e vale improvisar para manter a tradição (Fotos: Danilo Ramos/Rede Brasil Atual)

São Paulo – Victor Mamani não é um yatiri profissional, mas, na falta de um, vai ele mesmo. Afinal, feiticeiros bolivianos não aparecem com facilidade pelas ruas de São Paulo. Em tempos de emergência, a demanda aumenta e as exigências pela reputação de um yatiri caem exponencialmente.

Na terça-feira (24), uma meia dúzia deles se espalhou pela rua Coimbra, na zona leste da capital paulista, para atender a centenas, talvez milhares de clientes ávidos por uma ajuda para cumprir a promessa. A festa de Alacitas é celebrada anualmente na Bolívia, em especial no Altiplano, a região habitada pela população aimara, um dos povos integrantes do antigo império inca. Alacitas significa “compra-me”, ou “compra-me com fé”, o que traduz apenas parte dos significados da celebração.

"Pachamama, que nos abençoe", pedia Victor Mamani a cada oferenda

Trata-se de uma data de busca de realizações materiais. Quem deseja obter alguma coisa ao longo do ano compra uma miniatura do desejo em questão – casa, dinheiro, faculdade, viagem – e leva o objeto a um yatiri. A rua Coimbra tem poucos metros, uns duzentos, mas o preço do serviço varia bastante, talvez de acordo com a experiência de cada feiticeiro, indo de 1 a 10 reais.

Um cheiro adocicado de incenso disputa espaço com o odor defumado do churrasco ao lado. O objeto de desejo é colocado sob um pequeno fogareiro do qual, garante-se, sairá transformado, pronto para realizar o pedido daquele que tem fé – aos descrentes está fechada a porta da bonança. Umas gotas de álcool despejadas sobre a miniatura, umas gotas de vinho, e pronto: o alvo deve ser levado para casa e reservado em um canto no qual não será incomodado.

A oferenda precisa ganhar umas gotas de álcool e de vinho para ter efeito

Diz a tradição que o deus Ekeko, responsável pela data, era em vida um homem baixinho, sem esposa, sem filhos e com todos os bens materiais que uma pessoa possa desejar. Depois de morto, passou a oferecer o milagre da abundância. O costume diz ainda que o objeto a ser oferecido à divindade deve ser comprado pontualmente ao meio-dia, mas aceita-se que certos rigores sejam deixados do outro lado da fronteira.

“Essa é a nossa natureza, dos bolivianos. A ideia é que se cumpra um pedido”, diz assim, simples, Yocere Apace, uma moça que resolveu pedir um carro. Morando em São Paulo há um ano, ela celebrou pela primeira vez a festa de Alacitas fora de La Paz. Considera até que a cerimônia na capital paulista é interessante, ainda que com menos gente, mas não deixa de notar a falta de yatiris.

Erné Quispe comprou o objeto de desejo, um carro e uma casa, ao meio-dia, e depois fez o pedido usando cerveja. "O importante é ter fé"

A migração boliviana para São Paulo é grande e aumentou bastante na última década, à medida que melhorava a economia brasileira, o que criou a demanda pela manutenção dos costumes. “É mostrar que aonde você vai, as tradições vão com você”, diz Erné Quispe, um rapaz que mora há sete anos na cidade. Os imigrantes, calculados recentemente em uma população de 100 mil a 150 mil pessoas apenas na cidade, vivem principalmente em bairros das zonas leste e norte. Na rua Coimbra há cabeleireiros, restaurantes, mercadinhos e barraquinhas de CDs voltados ao consumo de quem deixou o país vizinho em busca da promessa de uma vida melhor financeiramente. “Aqui não se tem as tradições que nós temos, então é muito importante a festa. Temos fé na nossa cultura ancestral”, afirma a jovem Marlene Mendoza, que comprou um galo para ver se encontra um marido. Ela aconselha a compra de uma galinha – mas o que ocorre se já se está casado? “Fica com duas galinhas, oras”, responde, sem titubear.

A maior cidade do Brasil sempre se orgulha de se dizer aberta aos estrangeiros, um centro para a miscigenação cultural e a tolerância pela diversidade. Ao longo do ano são realizadas festas para os italianos, para os portugueses, para os árabes e para algumas das outras etnias ou nacionalidades que formam a cidade. A festa de Alacitas, porém, não parece sensibilizar o calendário de divulgação da prefeitura de São Paulo. “Atrapalharam um pouco hoje”, resume Victor Mamani sobre a ação da Guarda Civil Metropolitana, a força de segurança municipal, contra os comerciantes da região.

Graciela veio de La Paz exclusivamente para a festa de Alacitas. E não tardou a conhecer a fama de Gilberto Kassab

Graciela Carrasco Bustamente Celeste veio a São Paulo exclusivamente pela festa, mas não teve dificuldade em entender rapidamente o beabá da política local e decorar o nome de Gilberto Kassab. “Os produtos todos são da Bolívia. Não tem nada brasileiro aqui”, faz questão de enfatizar a comerciante, que pretendia comercializar os produtos na rua, mas acabou tendo de improvisar em uma garagem quente que, para melhorar a fatura, tem uma máquina de sorvetes soprando um vento de altas temperaturas sobre seu corpo. Apesar dos pesares, Ekeko lhe ajudou um bocado e ela pretende voltar a São Paulo para outras Alacitas mais.

“Haveria muito mais gente aqui se não fosse o problema que criaram”, queixa-se Marcelo Laura, natural de Cochabamba, no centro da Bolívia. Morador de São Paulo há 18 anos, ele acompanhou o crescimento e a organização da comunidade, que agora lhe garante o trabalho como vendedor de salteñas, salgados bolivianos.

Ao lado fica uma danceteria improvisada, quase um bailinho de garagem, que em dia de festa resolveu abrir mais cedo. Lá no fundo se alinham os instrumentos para um show de música boliviana e, por ora, moços e moças, muy tímidos, não se arriscam na pista de dança – todos preferem a segurança da mesa com frango, batata frita e cerveja ou refrigerante.

Pratos típicos, como as utuntas, não poderiam ficar de fora da celebração

A festa de Alacitas é também a possibilidade de se distrair um pouco, sair da linha, dar-se a certos desfrutes. Delia Mamani Yujara e Marcos Marcial Choque sentam-se em roda com os amigos, abrem umas latas de cervejas, ajeitam as oferendas por ali e abrem duas toalhas com tuntas, uma espécie de batata, e frangos. Com dificuldade para pagar os estudos na Bolívia, eles “trancaram” a faculdade e vieram ao Brasil trabalhar na costura para juntar dinheiro. Não veem a hora de retornar, o que deve ocorrer no meio deste ano.

Agora, vai: Johnny López torce para que Ekeko lhe deixe mais próximo do sonho da casa construída

Johnny López também quer voltar, mas só se for com o futuro no bolso. Natural de Santa Cruz de la Sierra, ele não tem o costume de comemorar Alacitas, mas resolveu seguir os conselhos de amigos do Altiplano e ver se transforma em realidade um antigo sonho. Já comprou um terreno na cidade natal, mas falta dinheiro para construir. Ekeko foi encarregado de resolver a pendência depois de receber um recado expresso: casa, produtos para comida e limpeza e até um título de propriedade foram oferecidos em miniatura. “Gosto do Brasil, mas nosso país sempre é diferente, a gente se sente mais à vontade, mais tranquilo.” Se Ekeko não puder dar um jeito na questão neste ano, que pelo menos na próxima festa as “autoridades” sejam mais amáveis com Johnny e seus compatriotas.

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