Para comerciante, prefeitura de São Paulo enxerga região da Luz ‘com cifrão nos olhos’

Para lojistas da Santa Ifigênia, projeto de revitalização da Luz ignora pessoas e privilegia especulação imobiliária

Demolições de estabelecimentos comerciais e prédios residenciais são pesadelo de quem mora ou trabalha na Luz (Foto: Maurício Morais/Rede Brasil Atual)

São Paulo–- Na esquina da padaria cinquentenária de seu Duarte, o croqui do projeto de revitalização da região da Luz – batizado de Nova Luz – prevê um prédio de vários andares. O dono descobriu o que a prefeitura ensaia para o seu terreno quando visitava o site do projeto. No local, atualmente, os únicos três andares existentes são a sede da Casa Aurora, que reúne padaria, restaurante e pizzaria em mil metros quadrados da histórica rua de mesmo nome. 

Duarte Maurício Fernandes é um dos milhares de comerciantes e lojistas surpreendidos pelas mudanças na região previstas no projeto da Nova Luz. Entre as alterações urbanísticas que a prefeitura pretende efetuar na região estão a demolição e desapropriação de até 60% dos imóveis, além de construções e reformas.

Dados da Câmara de Dirigentes Lojistas da Santa Ifigênia indicam pelo menos 15 mil CNPJs na área que inclui centros de comércio como a rua Santa Ifigênia, conhecida nacionalmente pelo comércio de produtos eletrônicos e a rua Duque de Caxias marcada por produtos e serviços automotivos.

“Nunca fomos procurados ou consultados sobre esse projeto”, aponta Fernandes. “A grande maioria (dos lojistas) ficou sabendo no boca a boca e no site do consórcio”, revela em alusão ao grupo de empresas que venceu a concorrência aberta pela prefeitura da capital paulista para elaborar o projeto urbanístico.

Histórico

  • O projeto de revitalização da Luz foi aprovado pela lei 14.917/09 e dividido em duas etapas, ambas licitadas pela prefeitura para empresas particulares.
  • Na primeira etapa, que deve terminar em maio deste ano, as empresas do consórcio  Concremat, Companhia City, AECOM e FGV,  que venceu o processo licitatório realizaram o projeto urbanístico da Nova Luz.
  • A próxima etapa ainda depende de licitação e escolherá a empresa ou grupo que vai realizar  desapropriações, construções e poderá comercializar os imóveis na área.
  • Fazem parte do projeto de intervenção urbanística a área delimitada pelas avenidas Cásper Líbero, Ipiranga, São João, Duque de Caxias e rua Mauá.

“Lógico que não houve consulta. Essa é nossa briga”, afirma  Joseph Hanna Fares Riachi, presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas.

Sem informações sobre o futuro da região e do próprio negócio, que dirige há 25 anos, Fernandes critica o descuido dos órgãos públicos municipais com o bairro ao longo dos anos e demonstra receio sobre o recente interesse pelo local. “A prefeitura enxerga a região da Luz com cifrão nos olhos”, dispara. “Isto é mais do que um negócio, é a vida da minha família e mais de 60 pessoas”, diz o engenheiro, que trocou a carreira de engenharia pelo negócio da família.

Cheia de história e perto de completar 50 anos, a Casa Aurora passou por reforma há dois anos. Os funcionários de Fernandes, muitos há décadas na região, retomam histórias de Adoniran Barbosa e sua preocupação com as demolições de casarões da Luz já na década de 1950.

Na reforma, as paredes da Casa Aurora ganharam azulejos novos e os mais de quatro mil clientes que passam diariamente pelo local são atendidos em balcões de mármore brilhante e em cadeiras novas. O forno de pizza e a cozinha foram feitos sob medida para o empreendimento. No segundo andar funciona uma cozinha industrial e no terceiro, um depósito de materiais. Todos os espaços foram reformados e preparados para atender as necessidades da padaria. 

Casa Aurora reformadaDepois de investir milhões na reforma, por meio de vários financiamentos, Fernandes disse que não há garantias por parte da prefeitura sobre o futuro de seu negócio. Ele também questiona porque não foi notificado pela prefeitura sobre a previsão de demolir prédios e mudar as ruas quando obteve autorização do próprio município para a reforma. 

Muitas perguntas, nenhuma resposta

O primeiro documento oficial sobre as mudanças no bairro chegou em abril deste ano à Câmara de Dirigentes Lojistas, diz Riachi. Desde janeiro, quando os rumores sobre o projeto ficaram mais intensos, os lojistas correm para entender o que vai acontecer com a região. Três audiências públicas foram solicitadas pelos comerciantes e moradores, mas pouco foi esclarecido.

“O secretário não responde nossas perguntas. Se ele sabe o que vai ser feito, está escondendo e a gente vai lamentar muito se for isso”, diz Riachi.

As constantes indefinições e a falta de informações sobre o projeto levantam desconfianças dos lojistas. “Como você adere a um projeto que você não sabe o que é e não sabe quem você é no projeto?”, pergunta. “Nenhum documento foi gerado desde que estamos conversando com a prefeitura. Faltam garantias”, alerta o presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas da Santa Ifigênia. 

Lojistas da Santa Ifigênia querem participar de revitalizaçãoUma possível alternativa ao consórcio que será escolhido para implantar o projeto é a remoção paulatina dos lojistas para demolição, construção de novos prédios ou reforma dos que forem mantidos. Mas a alternativa também desagrada a maioria dos donos de estabelecimentos na região.

“Numa mesa de negociação com o secretário, houve várias sugestões e uma delas, a que menos choca, seria essa mudança paulatina”, conta Riachi.

Um dos problemas nesse caso seria o tempo para realizar as transferências, demolições e novas construções de uma região de mais de quarenta quadras. Riachi calcula em mais de 40 anos o tempo para os  lojistas da Santa Ifigênia serem realojados. “São sete travessas, 14 quadras, mais ou menos três anos para cada quadra ser demolida, reconstruída ou reformada e devolver a empresa, então isso pode levar 45 anos”, mensura.

O longo período em obras não é o pior temor dos comerciantes. Para Fernandes, da Casa Aurora, mudar temporariamente seu negócio é inviável e pode levar ao fechamento de seu negócio, além de demissões. “Como se transfere uma padaria temporariamente e depois se traz de novo para o mesmo lugar”? é a dúvida de Fernandes. O comerciante afirma que questionou os técnicos da consórcio durante uma das audiências realizada graças à pressão de lojistas e moradores. Mas a resposta foi insipiente. “Deram aquela resposta que não diz nada: é um assunto para ser pensado”, conta. “Eu sou engenheiro e não sei fazer isso”, constata.

Negócios como a padaria de Fernandes, dependem do ponto e não podem ser mudadas sem extremo planejamento, alerta o comerciante. “Não dá para tirar o mármore daqui, ele quebra, vai para o lixo”, explica.

O desencontro de informações ou a falta delas soa para os comerciantes como desprezo da prefeitura com quem mora e trabalha na região. “Nós estamos dispostos a revitalizar. A gente agradece a ajuda da prefeitura, mas não do jeito que estão fazendo descartando a gente”, diz Riachi.

“Nunca nos deixaram construir os prédios que desejávamos, agora a prefeitura quer fazer isso no nosso terreno e nos tirando do lugar para vender para outros”, comenta o dirigente lojista, em tom de revolta.

“Parece que alguém pegou o Google, olhou por cima, viu que tipo de construção existia e começou a elaborar coisas, sem se preocupar com o quê e quem estava por baixo, sem se preocupar que este é o mais antigo bairro de São Paulo”, analisa Fernandes. “Não é você olhar um prédio de dois andares e pensar que dá para construir um de 20 (andares) no lugar”, pondera o comerciante.

Degradação planejada

Cartaz critica ações na Cracolândia

Ao lado da frustração e do medo de perder negócios que começaram há várias gerações ou do receio de perder as moradias, não são raras as manifestações de que a degradação do bairro foi planejada para desvalorizar a área. 

“Nâo posso afirmar, mas que dá para pensar dá, afinal você compra degradado e depois vende a preço de caviar”, avalia Fernandes. “Porque quando a presidenta veio aqui na região não havia nenhum dependente na rua?”, é mais uma das indagações de Riachi.

Para o líder dos lojistas, os dependentes químicos que coabitam na região conhecida como cracolândia, que faz parte do bairro, são “massa de manipulação” e desculpa para desvalorizar o local.

“A Santa Ifigênia é uma marca conhecida nacionalmente, não é justo a região e essa marca pagar por isso”, afirma. Segundo Riachi, a região é a segunda maior arrecadadora de impostos do estado de São Paulo. “Nós fizemos uma marca muito famosa, gostaríamos que a prefeitura respeitasse isso e não jogasse na nossa cara os dependentes. A prefeitura tem responsabilidade sobre isso”, esclarece.

A degradação forçada da área também reflete a nomenclatura do projeto e o novo nome que querem impor ao bairro, acredita o líder dos lojistas. “Projeto de revitalização é um erro, porque não falta vida à região. É só andar pelas ruas”, diz.

“Pelo simples fato de descartarem o nome e a marca do bairro de Santa Ifigênia, conhecido no mundo inteiro, chamando de Nova Luz, já desestrutura o comerciante, o futuro investidor e qualquer melhoria”, complementa Riachi.

“A construtora escolheu o lugar, não foi a prefeitura”, resume. “Porque aqui não tem enchente, vai sair mais uma linha de metrô e reúne as melhores condições para se trabalhar e morar, porque é perto de tudo”, avalia o presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas da região.

Indenizações de 30%

Cartaz critica Nova LuzComerciantes e prefeitura também não se entendem sobre possíveis indenizações no caso de retirada definitiva de estabelecimentos.

A prefeitura quer pagar 30% a título de fundo de comércio, os lojistas pleiteiam, quando for o caso, valor que leve em conta o faturamento, o imóvel e o valor da marca. “Você pega uma loja de 25 anos, faturamento de 1 milhão por mês e lucro de 250 mil, além do valor da marca, e a prefeitura quer pagar 30% do valor do prédio? Onde está a honestidade!”, indigna-se Riachi.

 

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