‘Pessoas são o mais importante do patrimônio cultural’, diz superintendente do Iphan

Historiadora explica como deve ser a reconstrução de São Luiz do Paraitinga, cujas construções históricas sofreram graves estragos por causa da chuva. Ela defende que diferenças partidárias fiquem de lado

Salma: “Quanto valem 300 anos de história? E as pessoas que preservaram essas moradias até hoje?” (Foto: Luciano Dina Marco)

São Luiz do Paraitinga – Para Salma Saddi, superintendente regional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em Goiás, São Luiz do Paraitinga pode ter suas casas históricas reconstruídas em dois anos. Ela ressalta, porém, que além das edificações, é preciso lembrar que o patrimônio cultural também é formado pelas pessoas que moram no local.

No cargo desde 2000, a historiadora foi responsável pela reconstrução de Goiás Velho, bairro histórico da cidade de Goiás, a 148 quilômetros da capital do estado. Em janeiro de 2001, uma enchente atingiu a região, destruindo casas e pontes dos séculos XVIII e XIX tombados pelo patrimônio histórico.

Em entrevista à Rede Brasil Atual, ela explica que é possível combinar a alvenaria antiga, de tijolo e barro, com técnicas contemporâneas de construção civil. Salma sugere ainda canteiros abertos e que o potencial artístico que caracteriza a cidade seja aproveitado para documentar e melhorar a relação da população com o trabalho de reconstituição histórica. Confira os principais trechos da conversa.

RBA – O que pode ser notado de similaridade e diferença entre Goiás Velho e São Luiz do Paraitinga?

Primeiro, são dois núcleos históricos belíssimos. O que a gente percebe é que há um rio com um volume de água pequeno, mas acontece alguma coisa – que ainda não se tem ideia – que trouxe essa água.

“Nossa bandeira deve ser a do patrimônio cultural brasileiro que se entende às casas mas também as almas dessas casas, que são as pessoas. São elas que fazem a história e que souberam preservar 300 anos de cultura” – Salma Saddi, superintendente regional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)

Na Cidade de Goiás, a enchente começou às seis da manhã e a chuva veio como uma tromba d’água. às onze da noite, o volume da água tinha baixado muito, o que foi diferente de São Luiz, onde a água ficou represada por mais de três dias. As casas sofreram muito porque os elementos construtivos são de barro – a taipa, o adobe. E foi uma enchente durante a madrugada. É um verdadeiro milagre pensar que ninguém perdeu a vida. Outra diferença é que o volume das casas é diferenciado. Em Goiás, são casas grandes, térreas. Aqui temos muitos sobrados, lindos, com detalhes maravilhosos.

O número de casas atingidas é muito parecido e o que viemos fazer aqui foi ver no que podemos somar. Só entendo que será possível a reconstrução dessa cidade se todos os órgãos estiverem unidos, se tanto a sociedade civil como o poder público estiverem imbuídos do mesmo objetivo. Nossa bandeira deve ser a do patrimônio cultural brasileiro que se entende às casas mas também as almas dessas casas, que são as pessoas. São elas que fazem a história e que souberam preservar 300 anos de cultura.

RBA – Como é feito, tecnicamente, o trabalho de junção das peças que ainda estão sob os escombros? E é claro que o mais importante para a população daqui é o caso da Igreja Matriz.

Estou aqui há uma semana. É impressionante como você conversa com a população e sofre-se muito mais pela igreja do que pela própria perda pessoal. É um desprendimento muito bonito. A igreja vai ser reconstruída, mas é necessário que isso ocorra respeitando a tipologia da cidade.

“É impressionante como você conversa com a população e sofre-se muito mais pela igreja do que pela própria perda pessoal. É um desprendimento muito bonito” – Salma Saddi, superintendente regional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)

A gente não precisa de pressa. A cidade de Goiás, em dois anos, estava toda reconstruída. Esse pode ser o tempo de São Luiz também. Não precisamos transformá-la em uma cidade cenográfica, só de fachada. Podemos ter uma técnica mista, aproveitar o que ficou de pé e preencher os vazios com elementos contemporâneos.

Eu vejo esse desejo na própria comunidade. Temos de ouvir essa cidade, ouvir os moradores e achar nossos caminhos. De antemão, acho impossível os trabalhos sem um comitê gestor. Nós temos uma prefeita, o Iphan, o governo de São Paulo. Se todos estão dispostos a somar, esquecendo as diferenças partidárias e as correntes de pensamento, podemos fazer um grande trabalho.

RBA – Como é a reconstrução do interior dos imóveis?

“Nesta cidade, já encontrei uma quantidade enorme de artistas. Compositores, poetas, músicos. Então, podemos fazer um “tocando a obra”. A cada 15 dias, podemos apresentar para a população o que está sendo feito e fazemos um momento musical. Você toca a obra normalmente e toca uma boa música, alegra o ambiente. Podemos ter obras com o canteiro aberto, levar os estudantes para mostrar o que está sendo feito” – Salma Saddi, superintendente regional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)

Algumas casas ainda estão interditadas pela Defesa Civil e nós ainda não tivemos acesso. Outras, em que já pudemos entrar, percebemos muitas paredes em pé e outras que cederam. Se você tem uma perda parcial em uma parede, nada impede que você complete com o elemento construtivo que está ali. Se tem uma perda total, vai usar o tijolo maciço.

O que não podemos perder de vista é que esta cidade é diferente. Ela tem elementos construtivos que contam sua história. Quanto valem 300 anos de história? E as pessoas que preservaram essas moradias até hoje? Nós temos técnicos qualificados para dar o devido tratamento para esses imóveis e essas técnicas podem ser multiplicadas por oficinas.

RBA – Muito se tem falado da necessidade de recuperar a autoestima da população. Nesse tipo de trabalho, quando entra o acompanhamento psicológico?

Acho que, ao instaurar um imenso canteiro de obra como vai ser esse, podemos usar vários recursos. São ações educativas dentro das obras. Nesta cidade, já encontrei uma quantidade enorme de artistas. Compositores, poetas, músicos. Então, podemos fazer um “tocando a obra”. A cada 15 dias, podemos apresentar para a população o que está sendo feito e fazemos um momento musical. Você toca a obra normalmente e toca uma boa música, alegra o ambiente. Podemos ter obras com o canteiro aberto, levar os estudantes para mostrar o que está sendo feito.

Sabemos também da tradição carnavalesca desta cidade. Duvido que no domingo de carnaval não terá pelo menos um grupinho tocando ali no coreto para alegria da população. A Festa do Divino vai acontecer sim. Não vai acontecer da mesma forma, mas vai acontecer como puder e depois voltará com toda a pompa.

É uma população que tem uma história de vida muito interessante, e que cultiva muito suas tradições. Essas coisas ninguém tira do povo. Acredito muito nisso. Em alguns momentos, vão sofrer, vão pensar que as coisas estão devagar. Será preciso cuidar com mais atenção dos idosos. E isso é um esforço coletivo.