"Rexistência"

O primeiro ato de Beatriz Matos, viúva de Bruno Pereira. Por Eliane Brum, em Sumaúma

Antropóloga volta pela primeira vez ao Vale do Javari depois do assassinato de Bruno. A comitiva dará um recado: o Estado está retomando a região dominada pelo crime

Arquivo pessoal/Via Sumaúma
Arquivo pessoal/Via Sumaúma
Beatriz entre indígenas matsés da aldeia Nova Esperança, no Vale do Javari (Foto de 2011, arquivo pessoal)

Sumaúma – Ao pisar nesta segunda-feira, dia 27 de fevereiro, no Vale do Javari, Beatriz Matos estará entrelaçando vários fios de sua vida. Foi ali que ela se apaixonou pela floresta amazônica, a partir de 2004, foi ali que ela se encantou pela fronteira cosmopolita onde se encontram e dialogam vários mundos indígenas, foi ali que ela conheceu Bruno Pereira e ambos foram tomados por uma paixão “avassaladora”, foi ali que construíram uma casa e onde sonharam viver com os dois filhos com nomes que homenageiam indígenas, e foi ali que, em junho do ano passado, Bruno foi assassinado, esquartejado e queimado quando fazia uma expedição junto com o jornalista britânico Dom Philips. É muito.

Beatriz Mota, viúva de Bruno Pereira
A antropóloga Beatriz Mota, viúva do indigenista Bruno Pereira, fala, entre Lula e Janja, durante ato da campanha de Lula em setembro do ano passado. No último dia 14 de fevereiro, Bia foi nomeada por Lula para assumir o Departamento de Povos Isolados do Ministério dos Povos Indígenas. “É uma oportunidade muito grande e temos que trabalhar para fortalecer o ministério e a ministra Sônia Guajajara”

Vai ter guerra na Amazônia

E Beatriz não sabe como lidará com esse tanto, porque desde que o horror aconteceu, ela busca dar conta de um dia de cada vez. Beatriz sabe, porém, o que fará ali. E isso, em suas palavras, a enche de “animação e esperança”.

Em ação articulada pela influente União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), uma comitiva do governo federal, composta por ministros e outras autoridades, ocupará a região, no Amazonas, para anunciar, com sua presença e com suas ações, que o Estado está de volta. Durante o governo de Jair Bolsonaro, o Vale do Javari, que faz fronteira com o Peru e com a Colômbia, foi entregue ao tráfico de drogas e de peixes, ao roubo de madeira e ao garimpo.

Demonstração de força

Quando foi executado, Bruno Pereira, um dos mais importantes indigenistas de sua geração, estava licenciado da Funai (hoje Fundação Nacional dos Povos Indígenas) porque o órgão estava dominado por uma política contrária aos indígenas e à natureza. Bruno havia sido exonerado de seu cargo de coordenador-geral dos povos isolados depois de fazer uma operação contra o garimpo. Dom estava ali para pesquisar para um livro que já tinha título: Como salvar a Amazônia.

Hoje, Rubén Dario da Silva Villar, conhecido como “Colômbia”, está preso como mandante. Também estão presos Amarildo da Costa Oliveira, o “Pelado”, seu irmão Oseney, e Jefferson da Silva Lima, suspeitos pela execução dos assassinatos. Mas o crime está longe de ser completamente elucidado, em todas as suas conexões, e os povos do Vale do Javari seguem sofrendo pelo domínio dos criminosos, que se acostumaram a agir livremente nos últimos quatro anos.

A presença do Estado é uma demonstração de força e de compromisso diante de um desafio imenso. Para Beatriz, uma antropóloga com 20 anos de experiência com os indígenas, professora da Universidade Federal do Pará, significa também pisar no território que concentra o maior número de povos isolados do planeta.

Desta vez, ela lá estará como recém nomeada diretora do Departamento de Proteção Territorial e de Povos Isolados e de Recente Contato, no Ministério de Povos Indígenas. Que uma riqueza cultural dessa magnitude esteja tão ameaçada é a denúncia eloquente da negligência deliberada do governo Bolsonaro, cujo genocídio dos Yanomami é infelizmente apenas o primeiro horror revelado.

Ato Ecumênico na Sé, em julho do ano passado, em memória de Bruno Pereira e Dom Phillips (foto: Paulo Donizetti de Souza/RBA)

Em luto

A entrevista a seguir aconteceu por encontro on-line – eu em Altamira, Beatriz em Belém do Pará, na última sexta-feira. Ela preparava sua mudança para Brasília com os filhos Pedro Uáqui, de 4 anos, e Luis Vissá, de 3. Ao falar de Bruno, alternava os tempos: às vezes no passado, às vezes no presente.

Para Bia, Bruno foi, com frequência ainda é, certamente será para sempre em seu legado na Amazônia, nela própria, em seus filhos. Nesta entrevista, ela fala de seu fascínio pelo Vale do Javari, de sua relação profunda com Bruno, de seus planos no novo cargo. E também do que significou ter seu companheiro assassinado num país presidido por um homem brutal como Jair Bolsonaro.

Bia segue em luto, nem poderia ser diferente. Mas há algo nela que chama atenção mesmo através de uma tela de computador. Ela é uma mulher muito viva, cujos olhos lampejam com frequência e a voz alterna diferentes nuances. Todo esse carisma será essencial para o que a espera em Brasília.

Leia a entrevista completa de Beatriz Matos, viúva de Bruno Pereira a Eliane Brum | Sumaúma

A fronteira é um lugar que concentra em um curto espaço uma enorme diversidade. De gente, de comida, de música, de religiosidade, de modos de vida, de possibilidades, de jeitos de ser. Tem milhões de formas de tomar ayahuasca, tem milhões de cultos evangélicos, tem milhões de igrejas messiânicas, tem milhões de movimentos, tem milhões de línguas. Esse diálogo é fascinante.

Eu responsabilizo Bolsonaro e Marcelo Xavier [presidente da Funai na época do assassinato de Bruno e Dom]. O Bolsonaro falou que eles não deviam estar no Vale do Javari porque lá teriam que andar com escolta armada. Eu não esqueço isso. Como é que o presidente de um país afirma isso sobre qualquer território que está sob a jurisdição dele?

Tenho a impressão que a reação ainda está por vir e será pesada. Mas também tenho a esperança que vem desse holofote que Lula colocou na questão dos Yanomami. Porque, ao ir para Boa Vista, ele fez uma blindagem. Foi como se dissesse: “Estamos falando de genocídio, estamos falando de calamidade. Então doa a quem doer, será feito o que precisa ser feito. Frente ampla, ok, mas tem um limite”.


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