Pernambuco

‘Hoje está tão calmo que a gente fica cismado. Ninguém sabe quando vai partir o próximo tiro’

Há décadas morando e trabalhando em área de usina agora desativada, agricultores temem ser expulsos

CPT
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Empresa já foi acusada de tentar intimidar trabalhadores ao destruir bananeiras na área da antiga usina

São Paulo – Nascido em Panelas, José Adriano de Andrade chegou antes de 1 ano a Jaqueira, a uns 50 quilômetros, na zona da mata de Pernambuco. Ou, como dizem por lá, na mata sul, a 150 quilômetros de Recife. Adriano tem 42 anos. Aos 15, foi trabalhar, como tantos outros, na Usina Frei Caneca, em torno da qual várias comunidades se organizaram. Aos 18, “me fichei”, foi registrado. Com o fechamento da usina, duas décadas atrás, as pessoas refizeram a vida na terra onde sempre moraram e cuja posse regular reivindicam. A agricultura foi a principal opção.

A vida seguiu do jeito possível até 2016, quando surgiu uma nova arrendatária da antiga usina, que estaria interessada em tirar os agricultores da região – onde muitos moram há várias décadas –. para criar gado, tornando tudo área de pasto. De lá para cá, começaram os conflitos, especialmente depois que o primeiro arrendatário cedeu a exploração da área para uma empresa (atualmente com o nome de Agropecuária Mata Sul).

Neste ano, em 16 de de julho, o agricultor Edeilson Alexandre Fernandes da Silva estava em sua moto quando foi atingido por tiros, na comunidade de Engenho Fervedouro. Eram 18h. Conseguiu dirigir até perto de umas casas, onde foi socorrido e levado ao hospital. Está se recuperando. Edeilson faria parte de uma lista de “marcados para morrer”.

Polícia na comunidade

A situação também ficou tensa um mês antes, em 16 de junho, quando várias viaturas da polícia estiveram na comunidade, revistando casas, depois de uma denúncia, não se sabe bem de quem, sobre tráfico de armas e drogas. Alguns trabalhadores foram levados à delegacia e uma mulher chegou a ser algemada. Nada foi encontrado, e todos foram liberados. Ficou o susto – e a desconfiança de que a denúncia tenha partido de alguém ligado à mesma empresa em conflito com os agricultores.

“Essa situação pesou muito na vida da comunidade”, conta o agente pastoral Geovani José Leão da Silva. “Deixou traumas. Tem criança que chega a perguntar se vão ser presos de novo. Isso deixa sequelas muito graves.”

O clima hostil contra os trabalhadores rurais deixa os moradores inquietos. Como na tarde da última quinta-feira (20), durante conversa com Adriano. “Está tão calmo que a gente fica cismado”, afirma o presidente da associação comunitária de Fervedouro. “Ninguém sabe quando vai partir o próximo tiro ou a próxima ameaça.” Segundo ele, capangas rondam a área.

Por isso, tanto Adriano como Geovani contam que, perto do entardecer, todo mundo se tranca em suas casas. “Todo mundo ficava até as 10 horas no terreno. Hoje, 5 da tarde é um deserto, porque está todo mundo como medo. As crianças estão vivendo como se fosse criança da cidade (fechadas em casa)”, diz o agente pastoral, nascido ali mesmo, em Jaqueira. Ele completará 45 anos em outubro.

Museu Virtual da cidade de Jaqueira-PE (Acervo particular da Biblioteca de Ricardo Guerra)
Imagem da antiga usina, em 1928, cuja área é alvo de conflito agrário em Pernambuco

Lavoura de subsistência

Metade dos 11.500 habitantes de Jaqueira mora em área rural. Muitos são posseiros, vivendo há décadas na região, em tempos de funcionamento pleno da usina. Agora, vivem da lavoura e criam galinhas, bode, cabra. Parte para consumo da própria família. Também vendem nas feiras. Alguns produtores são beneficiados com o Programa de Aquisição de Alimentos ou pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae).

Não há muita alternativa de trabalho ou renda. Fora o campo, as opções mais comuns seriam a administração pública, o comércio ou a aposentadoria. Geovani conta que muitos ex-funcionários da usina ficaram sem os direitos trabalhistas. “Ao fechar, não fechou a conta para eles. Não receberam direito.” A expectativa de muitos era de receber o pagamento das dívidas em forma de terras para produzir.

A antiga usina também tem dívidas milionárias com o estado e com a União. “Na prática, a usina faliu, mas não há processo falimentar e processo de recuperação judicial”, diz a advogada Gabriella Santos, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que acompanha o caso a pedido da comunidade. É uma situação “juridicamente complexa”, define. Quando surgiu um arrendatário, durante certo tempo houve, segundo ela, “uma relação de coexistência relativamente pacífica”.

O Ministério Público Estadual promoveu audiências e a situação ficou um pouco mais tranquila, com a área para o gado delineada. Mas veio uma empresa cessionária do arrendamento e o clima começou a mudar. “Essa empresa é que tem agido de forma violenta” afirma a advogada.

À procura de uma solução

Ameaças, destruição de lavouras e presença de gado nas nascentes e perto de escolas tornaram-se situações corriqueiras, relata Gabriella. Para ela, o Estado está sendo “passivo e omisso” na questão – que envolve dívidas e, agora, vidas. O governo, por exemplo, “poderá ficar com o imóvel e criar um assentamento”, sugere. “Seria uma atitude mais proativa.” O promotor de Justiça de Promoção da Função Social da Propriedade Rural, Edson José Guerra, foi procurado por meio da assessoria do Ministério Público de Pernambuco, mas não houve retorno.

No início deste mês, o Ministério Público Federal promoveu reunião remota para tratar do tema. Participaram representantes dos MPs Estadual e do Trabalho, Defensorias Públicas, Procuradoria da Fazenda, Incra, vereadores e representantes das famílias. A empresa não compareceu.

Para Gabriella, ainda há muito de coronelismo na região, uma área de senhores de engenho, como conta a história brasileira. Durante muito tempo, o cultivo de cana de açúcar foi base da economia. “O município foi criado em torno da usina e para servir a usina”, diz. “A pessoa que tem menos tempo aqui tem 25 anos. Os pais, avós, trabalhavam na usina. Muitos nasceram no próprio engenho”, lembra Geovani.

Caso de Adriano, cujo pai tem 90 anos e presenciou boa parte da história da usina. “Muita gente aqui deu a vida e o sangue por essa empresa.”