Banco comunitário

Trabalhadores camponeses lançam banco e moeda própria no interior de Alagoas

A moeda “Caatinga”, que equivale a R$ 1, começa a circular no sertão alagoano no dia 14. Será operacionalizada pelo Banco Funpet, autorizado pelo Banco Central. Cobrará juros perto de zero e vai financiar bolsas de estudos para filhos de agricultores aprenderem soluções para as demandas locais

Divulgação/MTC
Divulgação/MTC
Notas de Caatinga, que entram em circulação a partir de 14 de setembro: resposta ao descaso dos bancos oficiais

São Paulo – Pela primeira vez, trabalhadores camponeses de Alagoas terão seu próprio banco, o Funpet, e sua própria moeda, a “Caatinga é dinheiro”, que começa a circular nos municípios de Batalha, Jacaré dos Homens, Jaramataia e Major Isidoro, todos no sertão alagoano, a partir de 14 de setembro. Cada Caatinga terá valor equivalente a R$ 1 e será impressa pela Rede Brasileira de Bancos Comunitários, uma espécie de Banco Central, coordenada pelo Banco Palma, o primeiro a criar uma moeda comunitária no Brasil.

Toda a operação tem aval do BC. Haverá cobrança de uma taxa de 2% ao comerciante a cada venda, que é menor do que a cobrada pelos cartões tradicionais. Esse valor irá para o fundo do banco comunitário, que terá recursos para investir em crédito produtivo para apoiar os produtores das cooperativas, os microempreendedores individuais e a produção dos pequenos agricultores, entre outros. Os juros serão baixos ou até zero.

Para o Banco Palma, a circulação da Caatinga via Banco Funpet vai oxigenar a economia local e aumentar as vendas, criando empregos e mais qualidade de vida. Para o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Campo (MTC), articulador da iniciativa, o banco comunitário é também fomento para o desenvolvimento regional. Isso porque vai estimular financeiramente jovens a estudar, cursando programas voltados à solução de problemas de suas comunidades. Já há inclusive parceria firmada com o Instituto Federal de Alagoas (IFAL).

“A gente parte do príncipio de que é preciso construir um outro mundo, que é possível. E entende que o sistema financeiro brasileiro e mundial é injusto. Atende de maneira diferente pobres e ricos. Mas a classe trabalhadora, pobre, que gera riqueza, que é a menos beneficiada. Inclusive pelos bancos públicos, que dizem que são nossos, mas que só servem ao agronegócio”, disse à RBA Adriano Ferreira, dirigente nacional do MTC.

Resposta ao abandono

Segundo a liderança, o banco foi criado em um contexto de abandono dos pequenos agricultores pelo atual governo. O desmonte das políticas que garantiam a compra da produção juntou-se ao da estrutura pública voltada para o setor, como a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Tudo isso agravado pela pandemia da covid-19.

Por isso, o empreendimento pioneiro dos camponeses de Alagoas é mais que uma resposta à histórica falta de acesso dos mais pobres ao crédito e aos serviços bancários para operacionalizar a produção em suas pequenas propriedades e a comercialização – o que torna-se ainda mais imprescindível em uma região como o semiárido. É mais uma demonstração da força e da resistência da agricultura familiar, especialmente castigada a partir do golpe de 2016 e praticamente asfixiada com o governo de Jair Bolsonaro (PL).

“Para nós, enquanto trabalhadores do campo, o surgimento do banco é a concretização de um outro modelo, justo, solidário e economicamente viável de agricultura camponesa. De empoderamento, ao afirmar o camponês enquanto sujeito na construção da história, de solução para o problema”, diz Adriano.

Contra a desertificação e a pobreza

A ideia de um banco comunitário para os trabalhadores camponeses no interior de Alagoas surgiu de uma proposta de uma política nacional de combate à desertificação e à pobreza apresentada e, 2016 à presidenta Dilma Rousseff. A ideia não avançou, em meio ao ambiente político em que o golpe de estado se consumava.

Mesmo assim, um projeto regional permitiu que, de maneira solidária, fosse sendo formado um fundo patrimonial para combater a pobreza e promover a inclusão social na agricultura familiar. A estratégia escolhida foi a construção de 200 fogões ecológicos para famílias chefiadas por mulheres que caminhavam até cinco quilômetros em busca de lenha. Sem contar a distância, a inalação da fumaça é comprovadamente nociva à saúde dessas pessoas sem acesso ao botijão de gás.

Pelo sistema de fundo rotativo, pelo qual as famílias beneficiadas faziam devolução ao fundo solidário para construção do fogão em outras comunidades, a iniciativa obteve reconhecimento das Nações Unidas como tecnologia social de combate à desertificação no âmbito do Programa Dryland Champions. Por esse e outros trabalhos, o MTC foi reconhecido também pela Embaixada da Espanha no Brasil, em abril.

Agenda social

“Nessa época fortalecemos o Funpet na perspectiva de empoderamento das mulheres. E agora caminhamos na perspectiva de se tornar uma moeda nacional, que tem o objetivo de fomentar também o desenvolvimento ambiental, para trabalhar com compensação de crédito de carbono. Porque na prática temos também essa agenda social e ambiental, de empoderamento das mulheres e pretendemos abrir a moeda para âmbito nacional”, relata Adriano, referindo-se ao fundo que conta com apoio da Cáritas Brasileira, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e Convenção das Nacões Unidas contra a Desertificação, entre outros.

O MTC tem em sua base 5 mil famílias, que atuam na região Nordeste, Centro Oeste e Sudeste, com produção variada, pautada na valorização da biodiversidade dos biomas na perspectiva da auto sustenteção das pessoas com a floresta em pé. Dessa atuação já resultaram agroindústrias, como as de polpa de frutas do Cerrado no Tocantins, que produz 10 toneladas de polpa para merenda escolar de dois municípios. E as de geléias, licores e doces de corte de umbu.

Trabalho premiado na Espanha

Nesse sentido, há experiência exitosa de mulheres camponesas em projetos baseados em polpa de frutas em Minas Gerais – que contribuiu para a premiação pela embaixada espanhola –, além de produção de ervas para chás, como capim limão. No estado há ainda produção de queijos. A produção anual de milho e feijão chega a 10 mil toneladas ao ano. Uma produção modesta, levando em conta o tamanho reduzido das propriedades e as limitações climáticas de uma terra sem irrigação.

O objetivo maior das famílias, segundo o coordenador nacional do MTC, é a produção de alimentos saúdáveis, livres de venenos. “Por natureza, a gente defende uma agricultura regenerativa, sem uso de veneno e segue a agroecologia, a permacultura. Mas há o desafio do agronegócio, que avança muito nessa linha, com o eucalipto, e as grandes pulverizações aéreas, banhos de veneno. Mesmo assim há um trabalho para transição agroecológica”, disse.

Nessa caminhada de muitas perdas e danos aos trabalhadores camponeses de Alagoas e do Brasil desde o governo de Michel Temer, e com Jair Bolsonaro a extinção do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), teve uma pandemia no meio do caminho em um período de seca castigando. A fome que dava as caras voltou com tudo.

“O campo tem uma soberania alimentar, mas na falta de uma política, os trabalhadores camponeses só não passaram fome na pandemia por causa da solidariedade”, explica o integrante dos trabalhadores camponeses de Alagoas. E dessa solidariedade brotou uma cooperativa, a Cheiro da Terra, e uma rede que, em aliança com os consumidores mais conscientes da cidade, a produção agroecológica foi literalmente a salvação da lavoura desses pequenos produtores.


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