"No Callen"

Avanços do feminismo garantiram socorro à vítima de Daniel Alves, que está prestes a ser condenado

Protocolo contra violências sexuais, acionado pela casa noturna onde ocorreu o caso de estupro denunciado, é fruto da luta feminista em Barcelona

Lucas Figueiredo/CBF
Lucas Figueiredo/CBF
Para os juízes, "nada impediria" Daniel Alves de sair de Espanha por "via aérea ou marítima ou mesmo terrestre sem documentação" para chegar ao Brasil

São Paulo – “Quando (nós, mulheres) sofremos uma agressão, nossa cidade não deve nos julgar, mas sim nos acompanhar e nos defender.” A afirmação é da prefeita de Barcelona, Ada Colau, sobre a denúncia de estupro cometido pelo jogador de futebol brasileiro Daniel Alves contra uma mulher de 23 anos, em uma casa noturna da cidade espanhola. “No callen (Não se calem)”, disse a prefeita.

Trata-se de uma palavra de ordem do movimento feminista que se transformou em política pública. O Protocolo de segurança contra as violências sexuais em ambientes de lazer, criado em 2018, na capital da Catalunha, é a chave para entender a presteza no atendimento à vítima. E porque Daniel Alves está prestes a ser responsabilizado e condenado.

Ele está preso preventivamente desde a última sexta-feira (20), após ter apresentado três versões conflitantes sobre o ocorrido, agravando a sua situação. Duas semanas antes, em vídeo enviado a uma TV de Barcelona, ele disse que nem sequer conhecia a moça. Na primeira versão apresentada à Justiça, afirmou que estava no banheiro da casa noturna, quando a mulher entrou, e negou relação sexual. Depois, admitiu que fez sexo com a moça, mas que a relação teria sido consensual.

No entanto, o desenrolar das investigações, com depoimentos de pessoas relacionadas ao caso, coloca a versão do acusado em xeque. O caso já é conhecido. A jovem estava com uma prima e uma amiga, numa boate conhecida de Barcelona. A pedido de Daniel Alves, um garçom as convidou para uma área VIP. Elas aceitaram. Posteriormente, o jogador sugere à moça que o acompanhe a outro lugar.

O relato

Em depoimento, que o jornal espanhol ABC teve acesso, publicado nesta quinta-feira (26), ela disse acreditar que estava sendo levada para outra área VIP, quando descobriu se tratar de um banheiro. “Eu disse a ele que queria ir embora e ele respondeu que não podia sair de lá.” Ela relatou então que o jogador teria puxado seu vestido, de forma que ela se sentasse em seu colo. Foi quando começaram as agressões.

“Ele me agarrou pela nuca, não sei se também pelos cabelos e me jogou no chão, machuquei o joelho”, relatou. Na sequência, Daniel Alves teria forçado a jovem a fazer sexo oral. Ela conta que resistiu, “mas ele era muito mais forte do que eu”. Diante da recusa, ela conta que o atleta começou a bater no seu rosto. “Senti como se estivesse me afogando, não porque ele estava me apertando, mas pela angústia que eu estava sentindo”, declarou.

Após o ato sexual, de acordo com a jovem, Daniel Alves teria se afastado e começado a se vestir. Ela então se ergueu e tentou abrir a porta, mas teria sido impedida pelo brasileiro: “Você não vai sair daqui, eu saio primeiro”.

O Protocolo

Muito nervosa, a jovem disse não saber quanto tempo demorou para sair do banheiro. Quando conseguiu, relatou a violência à sua prima e começou a chorar. Toda a movimentação, à exceção do que ocorreu no banheiro, foi registrada pelas câmeras de segurança do local. Em prantos, ela então foi avistada por um segurança do local, que ativou o protocolo. Sua atitude foi decisiva para amparar a jovem. Ela foi levada para um local reservado, atendida pelo gerente da casa, Robert Massanet, que também prestou depoimento.

“‘O que aconteceu com você? Diga-me o que aconteceu com você! Você tem que se acalmar’. Mas fiquei muito impressionado”, disse Massanet. Neste momento, Daniel Alves passou pelo corredor onde estava o gerente, o segurança e a vítima, se dirigindo à saída da boate. Na sequência, os funcionários da boate acionaram a polícia, também seguindo os procedimentos da cartilha No Callen.

Após o primeiro atendimento, os policiais conduziram a moça até o Hospital Clínic, centro de referência para atendimento de vítimas de agressões sexuais em Barcelona. O médico legista constatou lesões compatíveis com luta e colheu restos de líquido seminal que agora devem ser comparados com uma amostra de DNA que Daniel Alves aceitou entregar para os investigadores.

Luta feminista

Ada Colau enalteceu a boate por ter seguido o protocolo No Callem. Não se trata de uma lei. E, por isso, tem adesão voluntária. A cartilha, de 54 páginas, é editada pela Câmara de Barcelona e dá recomendações de como agir em relação à vítima e aos suspeitos em caso de violência sexual.

O protocolo dá prioridade à vítima agredida. Além disso, a vítima deve ser informada, de maneira clara e compreensível, sobre sua situação e futuras consequências do ocorrido, resguardando o seu direito de denunciar, ou não, o agressor. Ao mesmo tempo, também pressupõe atendimento psicológico e jurídico. E atuação coordenada dos órgãos de Saúde, Justiça e Segurança.

A prefeita conta que, em 2015, sua gestão trabalhou para criar o primeiro Conselho de Feminismo e LGBTI da capital, justamente para “promover ações pioneiras como essa”. E é bom ver que são úteis, que em Barcelona 39 espaços já aderiram e estão sendo exportados para toda a Catalunha”.

Conscientização

Até o momento, não há relatos de qualquer tentativa de culpar a vítima. Os funcionários não indagaram se a jovem provocou, se estaria alcoolizada ou vestida de maneira “inadequada”, por exemplo. Numa das cidades mais cosmopolitas da Europa, tais vícios machistas começam a fazer parte do passado. Além disso, tanto os responsáveis pela casa noturna como os agentes de polícia não se intimidaram com a fama e o poder do dinheiro de um dos jogadores mais vitoriosos do mundo.

Nesse sentido, a Federação Catalã de Associações de Atividades Musicais e de Restauração (Fecasarm, na sigla em catalão) pediu à Justiça para integrar formalmente a acusação contra Daniel Alves, ao lado do Ministério Público. “O setor de diversão noturna não pode ficar impassível diante de fatos tão grave, principalmente quando estamos lutando em todos os níveis, inclusive colaborando com a polícia da Catalunha, para a formação de empresários e trabalhadores, no sentido de evitar casos de violência sexual”, alega a federação, em nota.

Silêncio constrangedor

Após a detenção, o atual time de Daniel Alves, o Pumas, do México, rescindiu contrato com o jogador. Caso confirmado o estupro ao final do julgamento, ele pode pegar até 12 anos de pena. No Brasil, no entanto, afora os relatos da imprensa, paira o silêncio dos principais personagens da cena futebolística, como jogadores, técnicos e a própria Confederação Brasileira de Futebol (CBF).

Além da jornalista esportiva Milly Lacombe, o ex-jogador e comentarista Walter Casagrande Jr. cobrou os boleiros a se posicionar, em artigo no portal UOL. Ele lembrou o silêncio da classe diante de outros crimes, como o assassinato da modelo Eliza Samudio pelo ex-goleiro Bruno. Ou ainda do caso Robinho, também ex-jogador da seleção, condenado pela Justiça italiana a nove anos de prisão também pelo crime de estupro.

“Tem muita gente que ainda não entendeu que jogadores de futebol são, antes de tudo, cidadãos brasileiros, e que como todos, devem zelar pelo espaço das pessoas por meio do respeito e da ética. Quem age fora desses parâmetros precisa ser confrontado mesmo por todos”, afirma o ex-atacante, que foi um dos símbolos da Democracia Corintiana.


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