faroeste paulista

Avança em São Paulo projeto que cria rota dos clubes de tiro e dá incentivos fiscais

Proposta de deputado bolsonarista prevê “rota turística”, com subsídios tributários, em 34 municípios. Comissão da Assembleia aprovou, mas segundo jurista projeto é inconstitucional

Arquivo/Sipesp
Arquivo/Sipesp
Há preocupação com o aumento da violência política por parte das forças conservadoras, em geral defensoras das armas e praticantes de tiro

São Paulo – Em meio ao aumento da violência, avança na Assembleia Legislativa de São Paulo um projeto de lei que cria a chamada rota turística dos clubes de tiro. Assim, a exemplo do circuito das águas, das cachoeiras, do vinho, do queijo, das malhas e das frutas, o deputado bolsonarista Castello Branco (PL) quer a dos clubes de tiro. E com incentivos fiscais. O argumento é que esses estabelecimentos e sua cadeia vão trazer benefícios, inclusive criação de empregos, com a exploração desse tipo de negócio, aos 34 municípios que constam da chamada rota turística do tiro. Ou faroeste paulista, como a proposta já está sendo chamada pelos críticos.

Estão incluídas no Projeto de Lei (PL) 228/2022 cidades que já contam com outros atrativos turísticos e que por isso nem precisariam estar na lista, caso o objetivo fosse mesmo o de atrair turistas. É o caso, por exemplo, de Atibaia, Barra Bonita, Praia Grande e Santos. Há outros que necessitam de incentivos para aumento de emprego e renda, mas não necessariamente desse tipo. Entre eles, Itapevi, Itaquaquecetuba e Santa Isabel.

A proposta ainda inclui Americana, Avaré, Barueri, Bauru, Botucatu, Caçapava, Campinas, Casa Branca, Embu-Guaçu, Guararema, Jaguariúna, Jaú, Lorena, Mococa, Mogi das Cruzes, Ribeirão Preto, Rio Claro, Saltinho,Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul, São Carlos, São José dos Campos, São José do Rio Preto, São Paulo, Sorocaba e Votuporanga.

O projeto prevê que, para fins de incentivo ao desenvolvimento dos atrativos consubstanciados na “rota turística do tiro”, o estado, em parceria com os municípios abrangidos, poderá adotar, na forma da legislação vigente, políticas creditícias, tributárias e de fomento ao investimento. E que as despesas decorrentes da execução desta lei correrão à conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.

“Indústria lucrativa” do clube de tiro

Segundo o deputado Castello Branco, sua proposta de “rota do tiro” tem potencial de agregar um novo atrativo turístico para São Paulo, ao passo que garante o fortalecimento dos colecionadores, atiradores e caçadores (CACs) do estado. Em suas argumentações, o bolsonarista declara ter buscado inspiração no estado norte-americano do Texas, que segundo ele recebe turistas em busca de eventos ligados ao tiro esportivo.

Além disso, segundo o parlamentar, o estado tornou-se uma indústria lucrativa nos Estados Unidos com o turismo de armas. “As empresas com estandes de tiro exploram, ao máximo, esse mercado, sediando casamentos e vendendo camisetas de souvenir cheias de buracos de projéteis’, destaca.

Essa meca do mercado armamentista é, por consequência, palco de tragédias. Em 24 de maio, um atirador matou 19 crianças e duas professoras em uma escola. Segundo a ONG Everytown For Gun Safety a venda de armas é pouco regulamentada no estado, que causam média anual de 3.647 mortes.

Outro argumento do deputado é que a prática do tiro é no Brasil é “mais do que um hobby, é um estilo de vida”. E cita dados do crescimento sem precedentes no último ano. “Até novembro de 2021, o Exército concedeu 1.162 novos registros por dia a Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CACs). É mais que o dobro dos 567 contabilizados diariamente no ano anterior.

Para esse público pujante de apreciadores de armas, o mercado tem oferecido cada vez mais serviços, como Clubes de Tiro de luxo com funcionamento 24 horas, treinamento exclusivo para mulheres e até hotel rural, com espaços para a prática de “tiroterapia” em família”, diz um inacreditável trecho das justificativas do projeto de lei do bolsonarista.

Adolescente assassinada e a amiga praticante de tiro

No começo de junho, a 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT) mandou soltar a adolescente de 16 anos condenada por matar a amiga, Isabele Ramos, com um tiro na cabeça em 2020, em condomínio de luxo em Cuiabá. Naquele dia a vítima, com 14 anos, foi chamada pela amiga para, juntas, fazerem um bolo. Segundo a polícia, tanto a família da adolescente que matou como a do namorado envolvido no caso fazem parte de grupo de frequentadores de clubes de tiro. Os jovens inclusive tinham aulas. Clubes de luxo como esses descritos pelo parlamentar bolsonarista.

Ainda segundo o parlamentar, sócios de cubes de tiro firmam convênio com hotéis fazenda, com vistas a incentivar o turismo rural. E com isso vêm se expandindo, de maneira significativa, vários setores da economia local e regional, com o surgimento de novos postos de trabalho, além de demanda por novos profissionais e surgimento de novos produtos.

Outro argumento de Castello Branco é que o Tiro Desportivo é um esporte em que os seus praticantes precisam cumprir rígidas exigências estabelecidas pelo Exército brasileiro. E que o atirador venceu processo moroso, desestimulante, burocrático, caro, que além dos requisitos objetivos como idoneidade comprovada por inúmeras certidões, passa por avaliações psicológicas e de manuseio de armas de fogo.

Atiradores sem controle

Mas não é bem assim na realidade. Basta voltar ao exemplo da jovem assassinada em Cuiabá já mencionada na reportagem. O grupo ao qual pertencem a família da amiga que a matou e do namorado têm mais que o dobro de armas que as forças de segurança. É o que afirma o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, lançado no final de junho.

O mesmo anuário mostra que neste ano os estoques particulares incluem 1.781.590 registros ativos, sendo 957.351 em posse dos caçadores, atiradores e colecionadores (CACs). De 2019 a junho de 2022 mais de 550 mil pessoas se registraram nessa categoria. Em igual período, houve acréscimo de 591.058 registros de armas, que corresponde a 42% do total de registros entre 2003 e junho de 2022. Foi com esse tipo de arma que o indigenista Bruno Araújo e o jornalista inglês Dom Phillips foram assassinados no Vale do Javari, no Amazonas.

Em 2021, havia 1.542.168 registros de armas de fogo expirados. Número superior ao total de registros ativos (1.490.323). Sem fiscalização, não há como saber qual a situação, ou mesmo o paradeiro, deste estoque de armamentos, evidenciando uma grave falha no controle público sobre o tema. A cada três armas de fogo em estoques particulares, uma está em situação irregular, segundo o Anuário.

Sem fiscalização do Exército

E mais: a quantidade de munição comercializada no mercado nacional em 2021 ultrapassou os 393,4 milhões de cartuchos, um aumento de 131,1% em relação a 2017. A maioria deles vendidos para os CACs. Para piorar a situação, apesar do número crescente de armas de fogo em mãos de particulares, o trabalho de fiscalização está muito distante daquela descrita pelo deputado Castello Branco.

Como mostra o Anuário, o Exército informou 11.639 visitas de fiscalização realizadas no Brasil em 2021, considerando todas as categorias de proprietários. Já a Polícia Federal, levando em conta apenas as empresas de segurança privada, instrutores de armamento e tiro e psicólogos, informou a realização de 2.680 visitas.

No final de junho, o deputado Carlos Cezar (PL), relator na Comissão de Constituição, Justiça e Redação, deu parecer favorável ao projeto, que segue tramitando de maneira ordinária. “É a instituição de um verdadeiro faroeste no estado de São Paulo”, disse à RBA o advogado Ariel de Castro Alves, presidente do Grupo Tortura Nunca Mais e membro do Movimento Nacional de Direitos Humanos. “Propostas que exaltem a violência e afrontem a segurança pública, o bem comum, a paz, o bem estar social da população e os direitos humanos, devem ser considerados inconstitucionais.”



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