Projeto de devastação

Ações e omissões de Bolsonaro levam a violência e morte entre indígenas

Combinação de violência com desproteção deixa saldo de 847 vidas perdidas para a covid, 744 crianças mortas por desnutrição e diarreia, 176 assassinatos e 148 suicídios

Veronica Holanda/Cimi
Veronica Holanda/Cimi
Além dos 1915 indígenas mortos em 2021, houve ainda centenas de outros casos de violência registrados

São Paulo – Os discursos, ações, políticas e omissões do governo de Jair Bolsonaro (PL) estão diretamente ligados ao avanço da violência e da morte entre os povos indígenas em todo país. E deixaram um saldo de pelo menos 1.915 vítimas entre os povos originários. Destas, 847 vidas foram perdidas para a covid, 744 crianças de menos de 5 anos morreram por bronquite, diarreia e outras doenças. Além delas, foram 176 assassinatos e 148 suicídios – um número recorde. É o que aponta relatório divulgado hoje (17) pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

O documento de 280 páginas, elaborado com apoio da Embaixada da Noruega e duas entidades ligadas à Igreja Católica na Alemanha, traz em detalhes os dados sobre o agravamento da situação sofrida por essas comunidades em 15 das 19 categorias de violência sistematizadas em relação ao ano anterior, que já havia batido recorde. Dados esses obtidos em sua maioria por meio da Lei de Acesso à Informação, negados no primeiro pedido e só fornecidos no recurso.

Conforme o relatório, os 176 assassinatos de indígenas no ano passado é menor que em 2020, quando foram 182, um recorde desde 2014, que o Conselho passou a contabilizar o dado com base em fontes públicas. Os estados com maior registro de assassinatos de indígenas, segundo o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e de secretarias estaduais de saúde, foram Amazonas (38), Mato Grosso do Sul (35) e Roraima (32). São os mesmos que estiveram na liderança em 2020 e em 2019.

Cruel e brutal

Entre os indígenas assassinados estão jovens e crianças, alguns com extrema crueldade e brutalidade. Causaram comoção, em 2021, os assassinatos de Raíssa Cabreira Guarani Kaiowá, de apenas 11 anos, e Daiane Griá Sales, do povo Kaingang, de 14 anos. Ambas foram estupradas e mortas.

As comunidades indígenas perderam 847 parentes para a covid-19. Segundo o Cimi, o número, extraído do SIM, é mais que o dobro do registrado pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), que indica 315 óbitos.

Segundo o Cimi, essa situação foi agravada pelas ações de desinformação sobre as vacinas contra a covid-19 em diversas regiões. Muitos povos, especialmente em contexto urbano, relataram negação do acesso à vacina, apesar da determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) da inclusão de todos os indígenas no grupo prioritário da imunização, independente do seu local de residência.

Crianças indígenas, diarreia e desnutrição

Por meio da Lei de Acesso a Informação, o Cimi obteve dados que indicam um total de 744 crianças indígenas de 0 a 5 anos mortas em 2021. Amazonas, Roraima e Mato Grosso concentram os maiores números de mortes nessa faixa etária. Pneumonia não especificada, diarreia e gastroenterite de origem infecciosa presumível, pneumonia bacteriana não especificada e desnutrição proteico-calórica não especificada estão entre as principais causas.

“Na ausência de políticas públicas para o combate à fome, a interrupção da entrega de cestas básicas de alimentos para comunidades que vivem em acampamentos à beira de estradas ou a falta de atendimento básico em saúde, podem explicar a morte de pelo menos 187 crianças por causas evitáveis”, afirma o Cimi.

Apesar da provável defasagem dos dados relativos a 2021, essa mortalidade infantil só foi maior, na última década, nos anos de 2014 (785), 2019 (825) e 2020 (776).

Suicídios

Chama atenção no relatório o aumento no número de suicídios, que em 2021 foi de 148, o maior já registrado. Os estados com mais casos foram Amazonas (51), Mato Grosso do Sul (35) e Roraima (13). Um número que pode ser maior porque a fonte de dados não abarca as comunidades que vivem no meio urbano.

Os registros mostram que a maioria dos casos (115) foi entre homens. A faixa etária com maior incidência é a dos 20 a 59 anos, em 59,5% dos casos. Houve um grande registro de jovens de até 19 anos – correspondente a
38,5% do total – que tirou a própria vida.

Casos de violência por omissão do poder público também aumentaram em relação a 2020. Exceção para os casos da chamada desassistência geral e da mortalidade na infância. Com base na Lei de Acesso à Informação (LAI), o Cimi obteve da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) informações parciais sobre as mortes de crianças indígenas de 0 a 5 anos.

Os dados coletados pela secretaria em janeiro de 2022, provavelmente defasados, indicam a morte de 744 crianças indígenas nessa faixa etária. Os estados com maior quantidade de mortes nesta faixa etária foram Amazonas (178), Roraima (149) e Mato Grosso (106).

Preconceito, racismo e morte a indígenas

O relatório traz ainda registros de casos de ameaça de morte a indígenas (19), outras ameaças (39), lesões corporais dolosas (21), racismo e discriminação étnico cultural (21), tentativa de assassinato (12) e violência sexual (14), entre outras categorias, totalizando 355 casos de violência contra pessoas indígenas, o maior número registrado desde 2013, quando o método de contagem dos casos foi alterado. Em 2020, haviam sido catalogados 304 casos do tipo.

Há também relatos de violência causada pela desassistência geral (34 casos), desassistência na área de educação escolar indígena (28), desassistência na área de saúde (107), disseminação de bebida alcóolica e outras drogas (13), e morte por desassistência à saúde (39), totalizando 221 casos.

Em 2020, os registros nestas categorias haviam somado 177 casos. Grande parte das ocorrências de omissão e desassistência são ligadas ao contexto da pandemia, especialmente em relação à falta de atendimento e equipes de saúde e falta de acesso a água e saneamento básico.

E ainda ataques contra o patrimônio dos povos, relatados em casos de omissão e morosidade na regularização de terras (871), conflitos relativos a direitos territoriais (118), e invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio (305). Os registros somam, assim, um total de 1.294 casos desse tipo de violação no período.

Sem demarcações

Segundo o Cimi, 2021 foi o terceiro ano em que, apesar das diversas ações do Ministério Público Federal (MPF), o presidente da República cumpriu sua promessa de não demarcar nenhuma terra indígena. Uma atualização do banco de terras e demandas territoriais indígenas da entidade identificou que, das 1.393 terras indígenas no Brasil, 871 (62%) seguem com pendências para sua regularização.

Destas, 598 são áreas reivindicadas pelos povos indígenas que não contam com nenhuma providência do Estado para dar início ao processo de demarcação. Além de não ter suas terras demarcadas, muitas comunidades indígenas tiveram suas Casas de Reza queimadas. Esses espaços são centrais para a espiritualidade. Foram quatro casos no Mato Grosso do Sul, envolvendo os povos Guarani e Kaiowá, e um no Rio Grande do Sul, com o povo Guarani Mbya.

Morte e violência com invasões

Conforme o relatório, o discurso e ações anti-indígenas de Jair Bolsonaro, que têm sido denunciados sistematicamente em órgãos internacionais de direitos humanos, são concretizados pela Instrução Normativa 09, que a Funai publicou em 2020, liberando a certificação de propriedades privadas sobre terras indígenas não homologadas. E da Instrução Normativa Conjunta da Funai e do Ibama que, já em 2021, passou a permitir a exploração econômica de terras indígenas por associações e organizações de “composição mista” entre indígenas e não indígenas. Ou mesmo do Projeto de Lei (PL) 490/2007, que inviabiliza novas demarcações e abre as terras já demarcadas à exploração predatória. E o PL 191/2020, de autoria do próprio governo federal, que pretende liberar a mineração em território indígena.

Não seria por uma razão diferente que a Terra Indígena Yanomami tenha a presença estimada de mais de 20 mil garimpeiros. Os invasores passaram a realizar ataques armados sistemáticos contra as comunidades indígenas, espalhando um clima de terror e provocando a morte, inclusive, de crianças. Os ataques criminosos, com armamento pesado, foram denunciados de forma recorrente pelos indígenas – e ignorados pelo governo federal, que seguiu estimulando a mineração nestes territórios. Os garimpos, além disso, serviram como vetor de doenças como a Covid-19 e a malária para os Yanomami.

Cenário devastador

No Pará, garimpeiros que atuam ilegalmente na Terra Indígena Munduruku atacaram a sede de uma associação de mulheres indígenas, tentaram impedir o deslocamento de lideranças do povo para manifestações em Brasília, fizeram ameaças de morte a indígenas e chegaram a queimar a casa de uma liderança, em represália a seu posicionamento contra a mineração no território. Enquanto essas ações ocorriam, a TI Munduruku continuou sendo devastada, com rios e igarapés destruídos pelo maquinário pesado utilizado na extração ilegal de ouro.

O Cimi lembra que a situação dos povos indígenas em isolamento voluntário também atingiu profunda gravidade, com a prática adotada pelo governo Bolsonaro de renovar as portarias que restringem o acesso a áreas com presença destes povos por períodos de apenas seis meses – ou nem sequer renovar, como no caso da TI Jacareúba-Katawixi, que está sem qualquer proteção desde dezembro de 2021.

Ainda segundo o relatório, as invasões atingiram pelo menos 28 Terras Indígenas onde há presença de povos indígenas isolados, colocando a própria existência desses grupos em risco. Essas áreas concentram 53 do total de 117 registros de povos isolados.


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