Vale o lucro

Vale omite violações cometidas contra atingidos em seu relatório de atividades

Segundo articulação internaconal dos atingidos, mineradora omite de seus acionistas todos os danos causados à vida e à saúde de populações inteiras e ao meio ambiente nos países onde atua e os obstáculos que impõe para reparar o que a Justiça manda

Ricardo Stuckert
Ricardo Stuckert
Mar de lama após o rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, em 25 de janeiro de 2019

São Paulo – A mineradora Vale apresentou nesta sexta-feira (29) aos seus acionistas relatório de atividades de 2021, que omite violações contra os atingidos pelo rompimento de suas barragens, conforme denuncia a Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale (AIAAV). A rede, criada em 2009, reúne comunidades, trabalhadores, pesquisadores, movimentos sociais, sindicatos e outros grupos engajados no enfrentamento às violações de direitos humanos e aos impactos socioambientais causados pelas atividades da companhia.

“Em um ano marcado pela pandemia de covid-19 e seus impactos globais, os métodos usados pela Vale para atingir o maior lucro da história de uma empresa aberta no Brasil em 2021, de R$ 121,2 bilhões, precisam ser questionados. O lucro da Vale não é compatível com os desastres que provocou e as reparações que é obrigada a fazer às pessoas e comunidades vítimas dessas tragédias”, disse Karina Kato, uma das acionistas críticas que integra a AIAAV.

“Ontem mesmo ficamos sabendo que a autoridade norte-americana dos mercados financeiros está processando a Vale por ter causado prejuízo aos investidores. A empresa mentiu sobre as condições de segurança de suas instalações”, completou. 

Acionistas críticos são pessoas que compram ações de uma empresa e usam seu direito de voz e voto durante as assembleias gerais anuais para denunciar aos demais acionistas as violações de direitos humanos e ambientais cometidas pela empresa. Em assembleias anteriores, os acionistas críticos da AIAAV votaram de maneira contrária às decisões corporativas que reforçam ou promovem crimes e violações.

A estratégia dos acionistas críticos neste ano consiste em ações externas à reunião, fortalecendo iniciativas locais daqueles que foram vítimas da insustentabilidade da empresa brasileira que mais lucrou no último ano às custas de sofrimento humano e ambiental.

Prejuízo e exploração

Recente anúncio da Vale de queda de 24% nos lucros do primeiro trimestre em relação ao mesmo período do ano passado suscita ainda mais preocupação entre os acionistas críticos. “Qualquer empresa está sujeita às flutuações do mercado. Mas, entre as companhias extrativistas, a vulnerabilidade é ainda maior, já que, desde 2008, não há controle do preço da commodity (no caso da Vale, minério de ferro)”, disse Kato. “Prevemos que uma das principais estratégias de recuperação dos lucros será incrementar a produção, como já aconteceu em anos anteriores, violando direitos dos trabalhadores e ignorando impactos nas comunidades dos arredores de suas atividades”.

Ainda segundo a Articulação, a empresa diz em suas comunicações que mantém uma “abordagem de engajamento proativa com as comunidades, criando oportunidades para um diálogo amplo e construtivo com foco no relacionamento de longo prazo e na construção de um legado para a sociedade”. Mas a realidade vivida pelas comunidades atingidas contradiz tal afirmação.

Em Minas Gerais, a Frente de Luta pelas Atingidas e Atingidos pela Mineração tem denunciado a perseguição de mulheres que expõem os danos causados pela Vale no distrito de Antônio Pereira, em Ouro Preto. Na comunidade de Socorro, em Barão de Cocais, moradores estão sendo processados pela empresa por terem regressado às casas que foram obrigados a deixar após evacuação em 2019, para recuperar pertences.

Além disso, um relatório do Ministério Público de Minas Gerais (MP MG), divulgado em março, mostra que 96% das famílias atingidas relataram pelo menos um sintoma relacionado à saúde mental; 90,3% pelo menos três; 85,8% pelo menos cinco e 69,6% pelos menos 10 sintomas. Dos 783 entrevistados, 120 afirmaram que a Vale negou totalmente as solicitações de indenização e, das 155 pessoas que fecharam acordo, 81,5% dizem que o montante recebido não cobriu os custos com os danos sofridos. Como a barragem está em nível 3 de emergência, a previsão da própria Vale é que ela seja descaracterizada até 2035.

Segundo a mineradora, a Fundação Renova acelerou os programas de reparação em Mariana, especialmente os de indenizações e reassentamentos. No entanto, transcorridos 5 anos e cinco meses do rompimento da barragem em Mariana, apenas 2,7% das famílias foram reassentadas. Em 2019, a 12ª Vara Federal Agrária de Belo Horizonte homologou uma petição conjunta assinada pelo Ministério Público Federal e as empresas Vale, Samarco e BHP referente à escolha das assessorias técnicas independentes para a reparação dos efeitos do crime cometido na Bacia do Rio Doce. Um ano depois, as três empresas se negaram a custear os planos de trabalho elaborados pelas comunidades e passaram a questionar o tipo de assessoria que seria dada aos atingidos. O impasse permanece sem que a Justiça Federal tome as providências necessárias.

Obstáculos para pagar indenizações

Desde 2020, moradores de Socorro, Tabuleiro, Piteiras e Vila do Gongo, em Barão de Cocais, têm denunciado que a Vale tem dificultado o pagamento de indenizações, chegando a exigir dos proprietários dos imóveis documentos inexistentes, além de não cumprir com os prazos de pagamento de indenizações legitimadas. Essas pessoas foram evacuadas de suas casas duas semanas após o rompimento da barragem do córrego da Mina do Feijão, em Brumadinho, que matou 272 pessoas em 25 de janeiro de 2019 e não puderam mais voltar.

Além das vidas perdidas, os traumas e o medo de novas tragédias, essas comunidades estão constantemente expostas ao risco de corte das reparações e compensações pela Vale – aluguel, água, energia elétrica, IPTU, vale gás e cartão refeição –, que sequer são considerados diretos pela empresa.

A Articulação dos Atingidos informa também que a população vizinha à barragem de Doutor, da mina de Timbopeba, em Ouro Preto, tampouco é citada na comunicação da Vale. Nem sequer o desmoronamento, em outubro passado, do vertedouro construído com a função de escoar a água e garantir a segurança da barragem após uma temporada de chuvas. Em dezembro, moradores da região denunciaram a precariedade das obras feitas para segurança, que, segundo eles, não estão resistindo.

A segurança dos trabalhadores também é uma questão menor para a Vale. Na barragem de Mirim, no Pará, uma fiscalização do Grupo Especial de Atuação Finalística do Ministério Público do Trabalho constatou que, na Zona de Auto salvamento da barragem, trabalhadores não sabiam como reagir em caso de inundação. No total, são cerca de 1,4 mil trabalhadores na área.

A mineradora descaracterizou sete das 30 barragens construídas com o método chamado a montante, similar ao utilizado em Brumadinho. Mas não faz menção ao descumprimento da lei conhecida como Mar de Lama Nunca Mais (Lei 23.291/2019), que prevê o descomissionamento de barragens construídas com esse método até 25 de fevereiro de 2022. Como consequência, a Vale teve de assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o governo de Minas Gerais e o Ministério Público do estado, com a participação da Agência Nacional de Mineração (ANM), acordando o pagamento de uma indenização de R$ 236,7 milhões por dano moral coletivo. O valor deve ser destinado a projetos que visem a segurança de barragens em Minas Gerais.

Vale viola direitos em outros países

A empresa é alvo de denúncias também em Moçambique desde 2007 por violações de direitos com relação à operação da mina de Moatize e do Corredor de Nacala. Em 2021, a Vale anunciou a venda de seus ativos naquele país. Até hoje, cerca de 1.365 famílias reassentadas na área da mina, outras comunidades inteiras reassentadas ao longo da ferrovia, fabricantes de tijolos e comunidades vizinhas que sofrem com a poluição da mina aguardam compensação pelos danos sofridos.

No ano passado, acionistas críticos denunciaram que a Vale Moçambique vinha negando acesso a documentos públicos que davam conta dos impactos ambientais e sanitários do empreendimento. Em assembleia, a diretoria da Vale garantiu que encaminharia os documentos aos solicitantes, o que nunca foi feito. A empresa continua negando acesso aos relatórios e às compensações.

Na Indonésia, três defensores de direitos humanos foram presos no dia 10 de março durante ato contra violações cometidas pela Vale. Hamrullah, 40 anos, Renaldy, 35, e Nimrod Sibanti, 59, participavam de um protesto junto a centenas de pessoas, reivindicando direitos básicos negados pela empresa. Segundo relatos, em dado momento da manifestação, a segurança privada da empresa provocou os manifestantes, causando tumulto. Quatro pessoas de comunidades foram espancadas, e Hamrullah, Renaldy e Nimrod foram presos, acusados de incitação à violência.

A articulação internacional dos atingidos lembra ainda a contradição das práticas da Vale com seu discurso em relação aos povos indígenas. E cita um relatório lançado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e pela ONG Amazon Watch, em 2021, denuncia que o informe público referente à desistência, por parte da empresa, dos requerimentos à Agência Nacional da Mineração (ANM) de projetos de mineração que afetassem terras indígenas não passou de manobra.

A publicação identificou que mineradoras apenas excluíram da área requisitada a parte que se sobrepunha a terras indígenas. Na maioria dos pedidos, no entanto, a nova delimitação ocorre no limite das áreas ocupadas por povos originários, em alguns casos contrariando até a portaria 60 de 2015, que estabelece como raio de interferência a distância de 10 quilômetros. Dessa forma, o efeito nocivo sobre as comunidades se mantém. Em 5 de novembro, a Vale detinha 75 requerimentos ativos com sobreposições em Terras Indígenas na Amazônia no sistema da Agência Nacional de Mineração (ANM).


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