Direitos Humanos

Governos precisam atuar para que violações de direitos humanos não se perpetuem, pede presidente da Corte Interamericana

Em entrevista à RBA, juiz Ricardo Pérez Manrique avalia que às vezes há dificuldade de compreensão e de acesso, pelos governos e também pela sociedade, sobre o sistema de proteção

Arquivo pessoal
Arquivo pessoal
Manrique: 'É imprescindível melhorar o relacionamento do governo e da população com os direitos humanos e com o Estado de direito'

São Paulo – O advogado uruguaio Ricardo Pérez Manrique, que em maio completará 75 anos, chegou à Corte Interamericana de Direitos Humanos em 2019, depois de presidir a Suprema Corte de seu país. Desde janeiro, comanda a entidade, sediada na Costa Rica, onde se redigiu a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em vigor desde 1978. Na abertura do Ano Judiciário, em fevereiro, Pérez Manrique mostrou preocupação com a situação de “vulnerabilidade e fragilidade” exposta com a pandemia, marcada por mais pobreza e maior controle do Estado.

Logo no início da pandemia, em 2020, a Corte aprovou uma resolução em que apontava riscos na luta contra a emergência sanitária. Desde a decretação de estados de emergência sem parâmetros adequados, passando por vigilância eletrônica e questões ligadas à vacinação.

Além disso, a crise provocada pelas mudanças climáticas, a crise das migrações e a violência contra a mulher, entre outras questões, devem ser abordadas sob uma perspectiva que contemple os chamados Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Aproximadamente 90% desses objetivos “têm sua fonte no Direito Internacional, particularmente o Direito Internacional de direitos humanos”, afirmou recentemente.

Nesta entrevista, o presidente da Corte Interamericana – que já condenou algumas vezes o Estado brasileiro, tendo como casos mais emblemáticos os do Araguaia e o de Vladimir Herzog – reflete sobre o atual momento da região, ainda sob impacto da pandemia. E sobre a urgente necessidade de desenvolver uma “cultura” relacionada à promoção dos direitos humanos.

Na abertura do Ano Judicial, em fevereiro, o sr. falou em “momento de inflexão” e riscos à democracia, com certa “apatia” diante dos acontecimentos. Por que isso acontece, na sua visão? 

O continente está em um momento muito especial porque desde 2019 houve uma série de mudanças políticas na região. Então já se estava manifestando um forte descontentamento frente à situação econômica, à situação do trabalho, que com a pandemia, em março de 2020, se aprofundaram.

Colocaram muitas pessoas em situação de dificuldade para conseguir seu próprio sustento. Isso gerou uma forte demanda para os governos, os sistemas políticos. Em alguns casos, se resolveu pela via da arbitrariedade, repressão. Em outros, com inflexões, debate e a própria defesa do Estado de direito pleno e absoluto, a que todas as autoridades devem estar submetidas, à lei e à Constituição.

Então, creio que neste momento, quando parecíamos estar voltando atrás em algumas das consequências da pandemia, aparece algo que insinua graves consequências, como uma guerra. Que está distante da América, mas no mundo globalizado tem aspectos muito importantes para a subsistência e a vida das pessoas.

Pensemos na quantidade de países na região que são dependentes de combustíveis fósseis de petróleo, que têm de importar. Pensemos na dependência do gás. E pensemos na maneira que se vai complicar o mercado de alimentos. Isso terá consequências políticas.

O sr. formou-se em Direito e Ciências Sociais em 1973, em um período marcado por ditaduras em vários países da região, inclusive o Uruguai (que, a propósito, começou naquele ano). Como foi esse início profissional? 

Eu obtive o título de advogado em 26 de junho de 1973, na noite que se daria um golpe de estado no Uruguai, situação que se prolongou até 1985. Então, minha vida foi marcada por esse fenômeno da ditadura, me consta como as ditaduras são trágicas para o povo, de que maneira as ditaduras na região geralmente se associam aos grandes poderes econômicos, com um processo de forte repressão, violação de direitos humanos, por meio de tortura, desparecimentos forçados.

Ou como se transformam em governos autoritários. Por meio dessa mesma força, garantem a aplicação de situações, ou soluções, ou políticas que contribuem para conservar, reforçar e concentrar a riqueza das pessoas mais favorecidas em seus respectivos países. (Em 1974, o advogado revalidou seu título na Universidade de Buenos Aires, passando a exercer a profissão na Argentina – que também entrou em ditadura dois anos depois.)

Até que ponto a pandemia de covid-19 comprometeu, de alguma forma, os direitos humanos? Teria havido algum tipo de excesso por parte do Estado em algumas regiões? 

Em 2020, a Corte Interamericana, pela primeira vez em sua história, divulga uma declaração, aprovada por unanimidade, em que assinala a imprescindível necessidade de que o combate à pandemia fosse um marco de respeito aos direitos humanos.

Neste momento, fizemos uma série de advertências aos governos e às populações dizendo que a emergência sanitária não poderia ser motivo para violar direitos como liberdade de expressão, direitos econômicos, sociais, culturais, direitos fundamentais à vida, e que o direito à saúde deveria ser preservado sem qualquer risco a outros.

Recordo que um dos pontos centrais da Corte foi a necessária proteção dos defensores e defensoras dos direitos humanos e dos jornalistas, para assegurar um devido controle da atuação dos governos no marco da pandemia. Seria imprescindível o acesso à Justiça, no marco do estado de emergência.

Lamentavelmente, devo dizer que essas advertências eram acertadas, porque em alguns países o sistema judicial praticamente parou de funcionar. O sistema de garantias foi dificultado. Em alguns países, seguem matando jornalistas e defensores de direitos humanos. Isso demonstra o quanto é necessário o compromisso de uma firme linha de ação, em todos os aspectos, para que todos os direitos humanos, sem exceção, sejam respeitados na região.

Como sabemos, o continente americano é marcado por profundas desigualdades socioeconômicas e também por violência em alguns casos. Considerando esses fatores, o sr. acredita que às vezes há alguma incompreensão – seja por parte dos governos, seja pelas pessoas comuns – do que significam efetivamente os direitos humanos? 

Os anos de experiência de vida e de atividade intensa no sistema judicial – fui juiz em meu país por 30 anos –, demonstraram, pensando basicamente nos 20 países que aceitam a competência da Corte Americana, que muitas vezes há dificuldade de aproximação para os governos ao sistema de proteção de direitos.

Muito mais dificuldade encontram as pessoas, enquanto há necessidade de uma cultura de se reconhecer que o Estado de direito está fundado na dignidade do homem. Em regras claras, que tornem efetivos todos os direitos das pessoas, e também se reconheçam obrigações de cada cidadão e cada cidadã.

Isso me parece que falta em muitos lugares. Uma cultura concebida como empenho político para que os direitos humanos sejam respeitados. Creio que na Corte estamos trabalhando fortemente em uma política de comunicação, que tende a dialogar com a sociedade, sobre o que denominamos cultura de direitos humanos. É imprescindível melhorar o relacionamento do governo e da população com os direitos humanos e com o Estado de direito.

Pelos dados disponíveis, há em torno de 50 casos contenciosos em trâmite na Corte. É um número excessivo? 

Eu diria que o trabalho da Corte está funcionando bem, porque em geral os casos são resolvidos entre 20 e 22 meses, salvo algum caso mais complicado, que exige mais tempo. Um tema central do sistema interamericano, primeiro, é que muitos cidadãos não têm acesso direto à Corte. Têm que apresentar a denúncia ante a Comissão Interamericana, e às vezes os trâmites, por razões várias, demoram bastante tempo, e o caso pode chegar à Corte depois de 15, 20 anos.

Porém, há um detalhe importante, que as pessoas devem se inteirar: geralmente, apesar de serem casos que ocorreram muito tempo antes de chegar à Corte para decisão, o que constatamos é que a raiz das violações aos direitos humanos que estão sendo julgadas lamentavelmente segue vigente no momento presente.

Então, a Corte, quando trata de um caso desses e vê que persistiram as condições em que se produziu a violação original, adota uma série de medidas de reparação, entre outras as chamadas medidas de não repetição, para evitar que se siga perpetuando a violação. Seria muito importante que os Estados adotassem mudanças efetivas, capacitação de pessoal, e também políticas públicas no sentido de evitar as condições que permitiram a violação dos direitos humanos.

Nesse sentido, sem citar nenhum país especificamente, como o sr. avalia o cumprimento das sentenças da Corte? Os Estados acatam as sentenças total ou parcialmente, ou há às vezes alguma resistência?

Eu diria que o cumprimento das sentenças é uma das preocupações inclusive da presidência da Corte. Estamos trabalhando permanentemente para melhorar. Eu entendo que há cumprimentos muito importantes, mas como cada sentença tem uma quantidade muito grande de medidas, é difícil encerrar um caso, porque sempre pode ficar uma medida pendente. Porém, muitas se cumprem. E são sentenças que provocam uma mudança fundamental na região.

Eu diria que basta pensar, por exemplo, em todas as sentenças sobre Justiça de Transição, sobre a não validade de anistia em casos de crimes de lesa-humanidade ou de graves violações de direitos humanos. Ou em matérias como liberdade de expressão. Desde que mudando, vou repetir, as condições que permitiram que os direitos humanos fossem violados no Estado em questão.

A Corte Interamericana recebe todo apoio necessário – político, institucional, financeiro – para seu pleno funcionamento? Quais seriam as principais demandas internas? 

Creio que as principais demandas deveriam ser, primeiro, a generalização de uma tendência (no sentido de) que os Estados se comprometam em cumprir as sentenças. Esta é uma linha de responsabilidade muito importante que se deveria tomar. Em segundo lugar, é necessário pensar em mudanças no sistema que permitam melhorá-lo.

Pensando concretamente, quando falo em mudanças, (que recebesse recursos) exclusivamente por meio dos aportes dos Estados membros da OEA, sem necessidade de recorrer a financiamento internacional adicional. E pensar em, por exemplo, um acesso direto dos cidadãos à Corte, que foi pensada como uma instituição que se reuniria de tempos em tempos. Mas estamos vendo um volume de assuntos, pela natureza da problemática que se apresenta, que há cada vez mais demanda.

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