Catástrofe cívica

Jacqueline Muniz: ‘Caso Moïse é exemplar do pior de nós mesmos’

Para cientista política, assassinato do jovem congolês expõe problemas estruturais do Brasil que reforçam o lugar de desigualdade e inferiorização da maior parte da população

Tomaz Silva/EBC
Tomaz Silva/EBC
"E o cidadão brasileiro está sempre exposto ao juízo final, a uma santa inquisição na esquina, sobretudo se ele é pobre e vem de longe, um longe da periferia, de outro país", aponta Jacqueline Muniz

São Paulo – O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes associou, neste domingo (6), o assassinato do congolês Moïse Kabagambe à ocupação irregular de áreas estratégicas do Rio de Janeiro pela milícia. Em sua conta no Twitter, o ministro apontou que a atuação de grupos paramilitares “está por trás da crise de segurança pública”. E cobrou do Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) e do Ministério Público Federal (MPF) que avance em investigações nessa área. “O caso Moïse traça suas raízes no poder do Estado paralelo e na invisibilidade do controle armado”, justificou Gilmar Mendes.  

Até o momento, a investigação não confirmou os indícios de envolvimento de grupos milicianos no brutal assassinato ou na ocupação dos quiosques na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio, onde o crime aconteceu. O jovem congolês foi espancado até a morte a pauladas na noite do dia 24 no quiosque Tropicália, no Posto 8 da praia da Barra. Segundo a família, ele cobrava pelo pagamento de diárias atrasadas, no valor de R$ 200, no estabelecimento para o qual havia trabalhado. 

Na semana passada, três homens foram presos acusados de envolvimento no crime. Um deles era funcionário do quiosque Biruta, vizinho ao Tropicália e cujo dono é o policial militar Alauir Mattos de Faria. Segundo a Orla Rio, o PM estaria à frente do estabelecimento de forma irregular. A Delegacia de Homicídios da Capital (DHC), responsável pela investigação, ainda não concluiu o motivo pelo qual Moïse foi morto. 

‘O pior de nós mesmos’

Entre as suspeitas de participação ou não de grupos paramilitares, de toda forma a cientista política Jacqueline Muniz, antropóloga e especialista em segurança pública da Universidade Federal Fluminense (UFF) observa que assassinato do congolês escancara o grau de “destituição do Estado e sabotagem de suas instituições que garantem o nosso vir e vir”. Em entrevista a Marilu Cabañas, do Jornal Brasil Atual, ela destaca o crime brutal como um “exemplar do pior de nós mesmos”. 

Jacqueline elenca que há cinco fatores que combinados possibilitaram essa violência brutal. O primeiro deles é o racismo, que também conecta o assassinato de Durval Teófilo Filho, um homem negro de 38 anos, morto a tiros pelo sargento da marinha Aurélio Alves Bezerra, pouco mais de duas semanas depois do caso de Moïse. Em depoimento, o militar disse ter confundido Durval, que era seu vizinho, com um ladrão. Além disso, a cientista também vê a naturalização da desigualdade brasileira, que torna uma parcela da população subalterna e destituída de direitos. Assim como a leitura negativa da sociedade sobre a condição de refúgio, o terceiro ponto.

Ela também menciona a “lógica da justiça de imediato” como mais um fator dessa violência. Por fim, Jacqueline também cita “animadores federais de auditório que estimulam exatamente tiro, porrada e bomba, a predação da polícia fraca para forte e forte para fraca, de maneira a permitir que o fortão musculoso da esquina possa exercer a sua justiça de quarteirão. E isso começa na presidência da República”, ressalta. 

Naturalização da desigualdade

“Cada um por si, Deus por ninguém e a milícia por todos. Temos (nesse caso) cinco problemas estruturais no Brasil que reforçam o nosso lugar de desigualdade e inferiorização. Por isso nos envergonha, porque é um tratamento. E se tratamos assim um refugiado, que é um migrante forçado, o que não acontece de igual nas outras mortes do cotidiano em que as pessoas são subalternas? O nosso direito só para o do outro se a gente reconhece esse outro como um sujeito de direito, e aqui não. Aqui a cidadania é algo dado de cima para baixo que o sujeito não pode usar”, contesta. 

A cientista política conclui que mais do que ir para a rua, é preciso também apontar os dedos para as autoridades que são coniventes com o que classifica como “poder de esquina” e “governo do crime”. “Esse rapaz foi cobrar uma dívida trabalhista e não tinha esse direito assegurado. E isso acontece diariamente. Não temos um contrato ali na esquina que faça valer as regras constitucionais, o Estatuto da Migração no Brasil, assim como as demais legislações. A lei serve a quem está por cima, que é o juiz para aplicar. E o cidadão brasileiro está sempre exposto ao juízo final, a uma santa inquisição na esquina, sobretudo se ele é pobre e vem de longe, um longe da periferia, de outro país. Temos que ter coragem de dizer como naturalizamos a desigualdade e, com isso, o racismo”, acrescenta Jacqueline Muniz. 

Confira a entrevista

Redação: Clara Assunção – Edição: Helder Lima


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