História

Escravidão no trabalho doméstico, uma herança colonial brasileira

Resgates de trabalhadores em residências tornaram-se mais frequentes em 2021

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'Uma senhora de algumas posses em sua casa': obra de Jean-Baptiste Debret, de 1823, mostra uma situação que pode soar familiar

São Paulo – Desde que os grupos móveis de fiscalização foram criados, em 1995, o chamado trabalho análogo à escravidão se caracterizou principalmente pelos resgates em áreas rurais, plantações, cultivos diversos, carvoarias. Também era comum encontrar trabalhadores em obras de construção civil e confecções nas cidades. Agora, as operações revelam outra face do flagelo: pessoas resgatadas da escravidão no serviço doméstico. Em casas de família. Às vezes, durante décadas.

Segundo a Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), do Ministério do Trabalho e Previdência, em 2021 a fiscalização encontrou 1.937 trabalhadores em situação análoga à escravidão. Destes, 27 foram no serviço doméstico. Parece pouco, mas em 2020 haviam sido três e no anterior, cinco.

Quarenta anos sem salário e férias

Madalena Gordiano, trabalhadora doméstica da família de um professor universitário, por exemplo, prestou serviços durante quatro décadas, “sem remuneração ou férias”, segundo o Ministério Público do Trabalho (MPT). Ela foi resgatada em novembro de 2020, após denúncia anônima. Foi encontrada na casa em que o professor vivia com a mulher, em Patos de Minas (MG). Tinha 46 anos na época do resgate. Ou seja, passou a vida toda lá dentro.

Recentemente, uma trabalhadora doméstica de 57 anos foi resgatada após 39 anos em situação análoga à escravidão, em uma residência de Campina Grande (PB). “Natural do município de Cuité, região do Curimataú, a paraibana era submetida a jornadas exaustivas, sob pressão psicológica e em ambiente insalubre e degradante, onde cuidava sozinha de quase 100 cães”, relata o MPT.

Isolada e agredida

Já neste ano, uma operação em Campo Bom (RS) resgatou uma mulher de 55 anos, que trabalhava como doméstica há mais de 40. “A trabalhadora não teve o vínculo de emprego reconhecido durante a maior parte desse tempo, não tinha limitação em sua jornada de trabalho diária ou semanal, era impedida de sair da residência sozinha e/ou sem autorização da empregadora, e de conversar ou se relacionar com pessoas estranhas ao núcleo familiar da empregadora. A mulher também era impedida de se relacionar e conviver com membros de sua família.  Além disso, sofria agressões físicas e morais.”

No Rio Grande do Norte, os auditores encontraram duas trabalhadoras em situação de escravidão doméstica, em Mossoró e Natal. “Além da exploração irregular do trabalho, ainda observamos, nos dois casos, maus tratos e, no caso de Natal, ameaças, abusos e excesso de poder disciplinar. No caso de Mossoró, houve ainda o assédio sexual, o que torna as condições ainda mais indignas. Psicologicamente eram situações muito degradantes”, diz a procuradora Cecília Santos, do MPT.

“O trabalho doméstico análogo ao de escravo é invisibilizado porque é normalizado”, acrescenta a prouradora. “Infelizmente ainda é muito comum que famílias peguem meninas no início da adolescência para criar, em troca de oferecimento de estudos. Só que essa oportunidade de estudo nunca vem e essas meninas acabam ficando para sempre cuidando daquela família, exercendo atividades de cuidado, todos os dias, sem controle de jornada, sem finais de semana, férias ou recebimento de salário. Isso durante décadas. O que percebemos é a normalização de uma cultura patriarcal que diz que a atividade de cuidado não merece remuneração, o que não é verdade.”

Queriam escravidão para sempre

Diretora da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), Maria Isabel Castro Costa também usa essa expressão e fala em “jugo do patriarcado”. “O jugo dos empregadores, conservadores, aqueles que gostariam que a escravidão nunca acabasse. Eles dependem da mão de obra doméstica, mas não valorizam esse trabalho. Por isso, ainda existem casos de trabalho análogo à escravidão na nossa categoria. Não existe fiscalização, a não ser que haja uma denúncia”, afirma.

No livro Libertas entre sobrados: mulheres negras e trabalho doméstico em São Paulo (1880-1920), a pesquisadora Lorena Féres da Silva Telles aborda esse processo de transição do trabalho escravo para o livre. Ou nem tanto, como mostra esse exemplo: uma trabalhadora que cuidasse de todo o serviço da casa ganhava de 12 mil a 20 mil réis, enquanto o aluguel de um cômodo custava até 15 mil réis. Assim, era praticamente impossível que elas conseguissem morar sozinhas. “Se não moravam com os patrões, era muito provável que morassem com parentes, companheiros, filhas e filhos”, observa a autora. O livro, publicado pela Alameda, é resultado de uma dissertação de mestrado.

Há pouquíssimos anos, as trabalhadoras domésticas conseguiram a aprovação de uma lei, sancionada por Dilma Rousseff (Lei Complementar 150, de 2015), que garantia equivalência de direitos em relação aos demais trabalhadores. Mas o caminho é longo. Segundo o dado mais recente da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do IBGE, de 5,609 milhões de trabalhadores no setor doméstico no país, 4,247 milhões (76%) não têm carteira assinada.


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