Memória ferida

Brasil tem 1.050 refugiados congoleses. Moïse chegou aos 14 anos

“O Brasil não pode ser o que há de mesquinho e desumano em sua formação”, disse Caetano Veloso

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De Madureira, onde morava, o congolês tinha que percorrer mais de 20 quilômetros até a Barra da Tijuca

São Paulo – O jovem Moïse Kabagambe chegou ao Brasil com os irmãos em 2011, aos 14 anos – ele completaria 25 em abril –, segundo a Cáritas no Rio de Janeiro. Por aqui, a comunidade congolesa é significativa. De 57 mil refugiados reconhecidos pelo Brasil de 2011 a 2020, 1.050 eram congoleses, segundo os registros do Ministério da Justiça, por meio da Coordenação-Geral do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare).

País formalmente independente desde 1960 (era colônia da Bélgica), o Congo é conhecido por suas riquezas naturais e também pelos conflitos internos. Segundo o Acnur, a Agência das Nações Unidas para Refugiados, há 918 mil refugiados e solicitantes de asilo congoleses em outros países da África. Mais de 1,3 milhão de pessoas se deslocaram pelo país no primeiro semestre do ano passado. A República Democrática do Congo tem aproximadamente 90 milhões de habitantes.

Quase 60 mil refugiados

No Brasil, segundo o Conare, no final de 2020 havia 57.099 refugiados reconhecidos. Os congoleses eram 1.050, atrás apenas de venezuelanos (46.412) e sírios (3.594). Apenas em 2020, o Comitê reconheceu analisou 63.790 solicitações e reconheceu 26.577 pessoas (41,7%) como refugiadas. Os homens representaram 61,9%. Tanto entre homens como mulheres, predominava a faixa de 25 a 39 anos. Ainda naquele ano, 113 pessoas do Congo deram entrada em pedido de reconhecimento como refugiado, com 28 deferimentos.

Como tantos de seus conterrâneos, a família de Moïse fugia da violência em seu país. Lamentavelmente, o jovem veio a terminar como vítima da violência aqui. Uma situação que não chega a ser rara entre refugiados que têm o Brasil com destino.

O caso dele talvez tenha sido o mais grave, mas várias ocorrências relacionadas a refugiados têm sido registradas nos últimos anos. Em agosto de 2017, um ambulante de nacionalidade síria foi agredido na praia de Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro. Fugido da guerra no Oriente Médio, refugiado no Brasil havia três anos, ele não registrou queixa e disse que não queria problemas. Dois anos antes, o haitiano Fetiere Sterlin, então com 33 anos, foi assassinado com golpes de faca e pedradas em Santa Catarina, sob gritos xenófobos e racistas.

Segundo a ONG Conectas, desde o início da pandemia, em março de 2020, o Brasil publicou 30 portarias que restringem a entrada de migrantes. “Estas portarias permitem, entre outras coisas, a deportação imediata de pessoas, ainda que elas tenham direito ao refúgio. No Brasil, migrantes oriundos de locais onde há crises humanitárias ou grave e generalizada violação de direitos humanos, como guerras, bem como aqueles que sofrem perseguições políticas, étnicas ou religiosas, têm direito ao refúgio assegurado por lei. A organização diz ainda que o país usou a pandemia para endurecer regras e violar direitos.

Amarga revolta

O cantor e compositor Caetano Veloso disse ter chorado ao ler sobre o assassinato de Moïse. E observou uma triste coincidência. “Que o nome do Quiosque seja Tropicália aprofunda, para mim, a dor de constatar que um refugiado da violência encontra violência no Brasil. (…) E fere a memória de Rogério Duprat, Torquato Neto, Nara Leão, Guilherme Araújo… Sobretudo a de Hélio Oiticica, que criou o termo. Tenho certeza de que a família Oiticica está comigo nessa amarga revolta. O Brasil não pode ser o que há de mesquinho e desumano em sua formação”, escreveu.

Moïse Kabagambe morava com a família em Madureira, bairro suburbano da zona norte carioca onde fica a Portela. Para chegar à badalada Barra da Tijuca, na zona oeste, tinha de percorrer um trajeto de mais de 20 quilômetros.


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