Luta por moradia

Pinheirinho: da destruição ao recomeço, histórias de vidas reconstruídas

Ocupação arrasada há 10 anos tornou-se um bairro com 1.500 famílias, em outro local. Desafio é garantir atendimento público

Reprodução/Twitter-Pref SJC/Montagem RBA
Reprodução/Twitter-Pref SJC/Montagem RBA
Construção no bairro entregue em 2016, a extensa área da ocupação e cenas da destruição de 10 anos atrás: violência

São Paulo – “Fica tranquilo que é um pente-fino”, disse um oficial da Polícia Militar a Valdir Martins de Souza, o Marrom, coordenador da ocupação do Pinheirinho, em São José dos Campos, onde aproximadamente 6 mil pessoas – 1.834 famílias – despertaram com amplo aparato policial nas primeiras horas de domingo, 22 de janeiro de 2012. Estavam lá 40 oficiais de Justiça, um efetivo de 2 mil homens (incluindo bombeiros, tropa de choque e polícia), 200 viaturas, 100 cavalos, 40 cachorros, três helicópteros.

Não era, claro, uma simples triagem. Em pouco tempo não haveria mais nenhuma casa ou barraco. O Pinheirinho não existia mais. Neste sábado (22), quando se completam 10 anos da reintegração, é lançado documentário sobre a história da ocupação, no bairro que surgiu no final de 2016, a 15 quilômetros da antiga ocupação. Com recursos do programa Minha Casa Minha Vida, Pinheirinho dos Palmares foi erguido na periferia da cidade do Vale do Paraíba, interior paulista. Enquanto isso, a área ocupada de 2004 a 2012 segue vazia, com mato crescendo.

Batalha judicial

Marrom conta que, na véspera da operação, havia até certa tranquilidade. “Uma semana antes, teve uma ação de despejo bastante forte, conseguimos suspender”, lembra. Então, não se esperava que pudesse ocorrer outra ofensiva, pelo menos não tão cedo. Até porque, no sábado, um dia antes da operação, durante assembleia com a presença de parlamentares, os moradores foram informados de que havia uma negociação em andamento, envolvendo os governos municipal, estadual e federal.

A juíza Márcia Loureiro, da 6ª Vara Cível de São José dos Campos, já havia determinado a reintegração. Um recurso ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo confirmou a decisão. Seguiu-se uma batalha judicial, enquanto se tentava costurar o acordo. Liminar obtida na Justiça Federal suspendeu a operação, mas pouco tempo depois essa decisão foi revogada. A União foi excluída do processo, sob entendimento de que não tinha interesse ou envolvimento direto na questão. Mas o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) manteve a suspensão.

Pinheirinho
Marrom, da coordenação da ocupação: “Único braço do poder público no Pinheirinho era a polícia” (Foto: Reprodução/Facebook)

Solução negociada?

Ocorre que o presidente do TJ, desembargador Ivan Sartori, determinou que a reintegração prosseguisse, afirmando que o ato judicial do TRF-3 não tinha efeito para a Justiça estadual. Apenas três dias antes, o juiz Rodrigo Capez, assessor direto de Sartori, havia recebido o então senador Eduardo Suplicy (PT-SP) e o deputado federal Ivan Valente (Psol-SP). E segundo relato dos parlamentares “se comprometeu a se empenhar por uma solução negociada”. Na madrugada do domingo, o mesmo Capez estava no Pinheirinho para, segundo palavras do TJ, “prestar todo auxílio necessário“.

Assim, ia trator abaixo um esforço de negociação que no dia 18 incluiu reunião de Suplicy e dos deputados estaduais Adriano Diogo (PT) e Carlos Gianazzi (Psol) com o próprio Sartori. E, posteriormente, com o síndico da massa falida da Selecta (autora do pedido de reintegração – a empresa teve a falência decretada em 1990) e com o juiz de Falências, no Fórum de São Paulo. Desse encontro saiu uma decisão de suspender a reintegração por 15 dias, o que pode explicar certo alívio dos moradores no sábado. Além disso, outras tentativas de reintegração, ao longo de anos, também haviam sido barradas.

Serviços públicos

Era um terreno abandonado havia mais de duas décadas. A ocupação começou na madrugada de 26 para 27 de fevereiro de 2004. “A gente dividiu os lotes, dividiu por setor… Foi uma coisa bastante organizada”, recorda Marrom, um ex-metalúrgico de 64 anos, aposentado desde 2015 e com “42 anos de carteira assinada”, como lembra. As 200 famílias iniciais viraram mil em uma semana. O local chegou a ter 3 mil, segundo ele, até as 1.843 no dia da reintegração. Ele arrisca dizer que 80% eram de São José, 15% do Vale do Paraíba e 5% de outras regiões. Cada um dos 14 setores tinha um coordenador e um vice. Havia reuniões às segundas (coordenação) terças (por setor), quintas (conjuntura) e sábados (assembleia geral). Com praças e quase todas as casas de alvenaria. “Era como se fosse um loteamento.”

O que não funcionava mesmo eram os serviços públicos. “Na realidade, o único braço do poder público no Pinheirinho era a polícia.” As negociações com a prefeitura na época (Eduardo Cury, PSDB, hoje deputado federal) eram “truncadas”. O governo estadual também era tucano (Geraldo Alckmin). Em 2012, o PSDB perdeu a prefeitura de São José para Carlinhos Almeida (PT).

“Estupro social”

Minutos depois de ser informado de que era apenas um “pente-fino”, apareceram helicópteros, policiais, guarda civil, cavalaria. “As mulheres saindo só de roupa de dormir, puseram fogo, queimaram toda a documentação do nosso movimento. Essa foi a mais violenta (reintegração) que eu já vi. Costumo dizer que o que aconteceu em São José dos Campos foi um estupro social.”

Carlos Júnior, mais conhecido como Tim Maia (“Eu tinha black power, gostava de cantar, ainda gosto”), já tinha a experiência de morar em um bairro de Salvador originário de ocupação. Seu pai, dono de uma marcenaria na periferia soteropolitana, saiu de lá em 2002 para trabalhar em São Paulo. Foi caseiro na cidade de Igaratá, até descobrir o Pinheirinho. “Ele tinha aquele anseio de moradia própria”, lembra Carlos, que perdeu pai e mãe em um acidente de moto em 2010, quando estava na adolescência. E se engajou no movimento social dos sem-teto. É técnico em polímeros (análise de material plástico). E poeta.

Pobres são “incômodo”

Carlos/Tim reforça o testemunho de Marrom sobre a véspera da desocupação. “A gente estava comemorado a quebra de uma liminar de reintegração de posse. Lembro de como a gente estava feliz. (…) A gente baixou a guarda. As pessoas estavam dormindo, algumas se deslocando para trabalhar. Não teve tempo de resistência”, afirma. Para ele, o que ocorreu ali foi um esforço para “tirar da vista” aquela multidão de pessoas pobres. “Era inconcebível que uma das melhores cidades para se viver tivesse a maior ocupação da América Latina. É gentrificação. Tiraram o Pinheiro para dar cabo desse incômodo.” E o fato de o terreno estar vazio até hoje reforça essa percepção, acrescenta. “Um dos metros quadrados mais bem quistos… É inconcebível que se morasse pobre naquelas terras.”

E o perfil dos excluídos se repete, constata Carlos: “É o cara negro, que tem dificuldade de acessar o mercado formal de trabalho. A sociedade moderna é uma máquina de produzir sem-teto”.

Depois da desocupação, os moradores foram encaminhados a espaços públicos, abrigos, ginásios, galpões, acomodações muitas vezes impróprias, segundo relatos. Mas a maioria não conseguiu sequer recuperar seus pertences. Na triagem, lembra Carlos, “tinha uma galera tentando dissuadir a gente a voltar para nossos locais de origem”. Ele conta que mentiu sobre seu endereço para ter mais chance de conseguir emprego. “Aí foram aparecendo anjos na minha vida.”

Demanda interminável

Até que, então, o movimento conseguiu levar o Minha Casa, Minha Vida, que não existia no município. E o bairro, enfim, surgiu, para aproximadamente 1.500 famílias, quase todas remanescentes da ocupação. Mas existe uma demanda por serviços públicos que é “interminável”, segundo Carlos. Por outro lado, a discriminação se manifesta até por detalhes. “O ônibus que roda aqui não leva o nome da gente (do bairro). Professores não querem ficar aqui. Não tem lazer, não tem emprego. A gente não é mais ocupação, mas parece que carrega o fardo de ser.”                             

Renato Ferreira de Araújo chegou ao Pinheirinho em 2008, vindo do município de Cachoeira Paulista. Soube da ocupação por uma cunhada. “Fiz a casinha, arrumei um serviço e fiquei lá”, conta, lembrando dos momentos vividos naquela reintegração. “Chegaram já tirando a gente jogando os cavalos, jogando bomba. Diziam: ‘Vocês vão sair agora, sem pegar nada’. Só saí com a roupa do corpo mesmo. Não teve nem como reagir.”

“Só a gente sabe o que passou”

Quando conseguiu voltar, não encontrou mais nada de valor, nem documentos. Passou 15 dias em um abrigo. Viveu um tempo com o chamado aluguel social. Agora, é morador de Pinheirinho dos Palmares, em uma das 1.461 casas de 46,5 metros quadrados construídas no bairro, com a mulher, seus seis filhos e netos. “É uma ótima casa. Graças a Deus, depois de tudo”, diz Renato. “Nós não dormia, não sabia se ia acordar com polícia. Vivia com medo. Hoje tá em paz.”

Assim, ainda existe estigma com quem veio do Pinheirinho. “A turma já se afasta um pouco. Fica uma coisa marcante na gente”, conta Renato. Ele leva uma hora de ônibus até o trabalho. É porteiro em um prédio residencial de São José. Depois de três anos desempregado e com os seguidos sustos na ocupação, sente-se bem na vida atual. “Foi uma vitória. Pois só nós sabemos o que passamos lá dentro.”

Meus pés são rastros
na dança da mata
Os tambores me guiam
Na canção das flores

Minha sombra
Sobrevoa sobre nuvens
E raios
a busca do meu livre canto

E somos espaços e presença
Que ocupa e espalha por todo canto
E ecoa com gritos mudos as cidades, as estradas, o campo…

(Carlos “Tim Maia” Junior)