Luta por justiça

Mais de cinco anos depois, Justiça inicia audiências sobre o massacre do Caarapó

As audiências de instrução do caso são a primeira etapa do processo criminal que vai julgar cinco fazendeiros pela morte do agente de saúde Guarani Kaiowá Clodiodi e por ferir outros indígenas em Dourados em 2016

Lídia Farias/Cimi MS
Lídia Farias/Cimi MS
"A vida não volta, mas que pelo menos o julgamento possa servir como símbolo para que eles não sofram demais violências em seu território", ressalta o Cimi

São Paulo – Mais de cinco anos depois, a Justiça Federal de Dourados (MS) iniciou as audiências do processo criminal que vai julgar os cinco fazendeiros acusados de serem os responsáveis pelo chamado massacre de Caarapó. Desde quarta-feira (12), o órgão realiza as oitivas das vítimas e das testemunhas do ataque, ocorrido em 14 de junho de 2016, em audiências de instrução do caso. As sessões tramitam em sigilo e devem seguir até a próxima segunda-feira (24). Os réus também serão interrogados. 

O caso vem sendo acompanhado de perto e com expectativa pelos Guarani e Kaiowá, que vêm cobrando e protestando em frente à sede da Subseção Judiciária Federal de Dourados por justiça e pela agilidade no julgamento. Há mais de cinco anos, o episódio de violência marca seus corpos e memórias. Na manhã daquele 14 de junho, mais de 100 fazendeiros e pistoleiros, muitos encapuzados, uniformizados e portando armas de diversos calibres, atacaram um grupo indígena acampado em uma fazenda que estava dentro da Reserva de Caarapó, identificada pela Funai, e denominada pelos povos tradicionais como aldeia Tey’i Kue. 

A comunidade foi violentamente retirada da área, mas ainda assim os disparos continuaram, ferindo uma dezena de indígenas. Seis deles foram hospitalizados em estado grave, inclusive uma criança. No ataque, o agente de saúde Guarani Kaiowá Clodiodi Aquileu Rodrigues de Souza, de 26 anos, que tinha até o local para atender os feridos, acabou sendo assassinado com um tiro no abdômen e outro no tórax. Muitos carregam os projéteis alojados em seus corpos até hoje e sofrem com as consequências físicas e psicológicas do massacre. 

Confinados pela violência

O professor Jesus de Souza, irmão de Clodiodi, por exemplo, morreu aos 33 anos, em setembro de 2020, vítima de complicações da covid-19. Mas seu estado de saúde já vinha debilitado desde o ataque por conta dos projéteis que ainda carregava em seu corpo mesmo após semanas internado. “Nós temos várias vidas despedaçadas, porque o trauma que essas pessoas ficaram é para além do ferimento físico. É ferimento de alma mesmo. Ele nunca passou”, observa o coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) da Regional de Mato Grosso do Sul, Matias Brenno Rempel.

Em entrevista a Marilu Cabañas, do Jornal Brasil Atual, ele comenta a importância do julgamento contra o que chama de “normalização da violência contra os Guarani e Kaiowá”. O segundo maior povo indígena do Brasil e com a pior questão territorial já foi chamado de a “Faixa de Gaza brasileira”. Na reserva de Dourados há ao menos 18 mil indígenas, em 3 mil hectares, esperando pelo processo de demarcação de suas terras. De acordo com o Cimi, eles estão praticamente confinados pela expansão das fronteiras agrícolas e da violência do agronegócio. Apenas entre 2015 e 2016, no ano do massacre, a entidade contabilizou 33 ataques semelhantes sem qualquer resposta da Justiça. 

No caso de Caarapó, os cinco fazendeiros denunciados pelo Ministério Público Federal (MPF) chegaram a ter a prisão preventiva decretada. Mas desde outubro de 2016 respondem em liberdade. Segundo o conselho, eles são acusados de formação de milícia armada, homicídio qualificado, tentativa de homicídio qualificado, lesão corporal, dano qualificado e constrangimento ilegal. Se condenados, as penas podem chegar a 56 anos e seis meses de reclusão.

Esperança na Justiça

“Eles fazem parte do sindicato rural, parte política do agronegócio (…) e fazem uso de processos milicianos mesmo. Quando se sentem afetados em seu direito, não buscam o Estado Democrático ou a Justiça por medo de que exista o mais forte, que é o processo de demarcação legítima de um território já reconhecido. Então, recorrem às práticas fora do estado, paramilitar e estão dispostos a fazer tudo. É por isso que comemoramos quando ficamos sabendo da retomada desse processo. Porque ele é uma forma de talvez demonstrar para os ruralistas que, apesar do poder econômico, eles não terão impunidade. E que um crime, ainda mais contra uma comunidade dessas que versa pelos seus direitos nessas situações, é preciso ser levado a cabo”, defende Rempel. 

Ainda segundo o Cimi, a prisão dos fazendeiros, além de uma reparação, pode tranquilizar os Guarani e Kaiowá que desde então temem que o ataque se repita por conta da impunidade. Ele lembra que os indígenas ainda resistem na região por meio dos chamado tekoha, palavra em Guarani que diz respeito à potencialidade do território. “Onde podem ser, onde podem estar vivos”, conforme explica o coordenador. 

“Com tantas provas, os indígenas Guarani e Kaiowá esperam conhecer a justiça porque até hoje eles não a conhecem. Nós conhecemos o peso da injustiça deflagrada em tantas formas que são a fome, a morte, a falta do território. Mas eles estão muito confiantes de que podem dessa vez ter pelo menos uma justiça para Clodiodi. A vida não volta, mas que pelo menos o julgamento possa servir como símbolo para que isso diminua e eles não sofram demais violências em seu território”, ressalta Rempel.

Confira a entrevista

Redação: Clara Assunção – Edição: Helder Lima


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