Pluralismo?

Jornalistas da ‘Folha’ contestam publicação sobre racismo e pedem reflexão: ‘Padrão nocivo’

Para profissionais da redação, consequência pode ser a perda de credibilidade da publicação, depois de certo ganho de audiência

Reprodução/Wikimedia Commons
Reprodução/Wikimedia Commons
Jornalismo deve defende valores como 'a verdade e o respeito à dignidade humana', afirmam quase 200 profissionais

São Paulo – Em movimento incomum na redação, profissionais da Folha de S.Paulo encaminharam “carta aberta” à direção questionando o jornal sobre a publicação de um artigo, na edição impressa do último domingo (16), , no qual o autor tenta justificar a existência de um suposto racismo reverso. Para os 186 jornalistas que assinam o documento, a Folha tem publicado textos que “negam ou relativizam o caráter estrutural do racismo na sociedade brasileira”.

Controversos, os artigos causam polêmica nas redes sociais, aumentando a letura e garantindo audiência para o jornal. Mas, para os jornalistas, esse padrão é “nocivo” além do curto prazo. “O racismo é um fato concreto da realidade brasileira, e a Folha contribui para a sua manutenção ao dar espaço e credibilidade a discursos que minimizam sua importância”, afirmam.

Eles lembram que a Folha não costuma dar espaço a quem relativiza o Holocausto, defende a ditadura, “terraplanistas” e integrantes do movimento antivacina. E questionam por que a prática seria outra no caso do racismo. Se textos como o do último domingo, sobre “jornalismo reverso”, atraem audiência em um primeiro momento, “sua consequência seguinte é minar a credibilidade”. E afirmam ainda que o jornalismo deve defender valores como a verdade e o respeito à dignidade humana.

Confira a íntegra do documento:

19 de janeiro de 2022


Carta aberta de jornalistas da Folha à direção do jornal

Caros membros da Secretaria de Redação e do Conselho Editorial da Folha,
Nós, jornalistas da Folha aqui subscritos, vimos por meio desta carta expressar nossa preocupação com a publicação recorrente de conteúdos racistas nas páginas do jornal.

Sabemos ser incomum que jornalistas se manifestem sobre decisões editoriais da chefia, mas, se o fazemos neste momento, é por entender que o tema tenha repercussões importantes para funcionários e leitores do jornal e no intuito de contribuir para uma Folha mais plural.

O episódio a motivar esta carta foi a publicação de artigo de opinião intitulado “Racismo de negros contra brancos ganha força com identitarismo” (Ilustrada Ilustríssima, 16/1), em que Antonio Risério identifica supostos excessos das lutas identitárias, que estariam levando a racismo reverso.

Para além de reafirmarmos a obviedade de que racismo reverso não existe, não pretendemos aqui rebater o que afirma o autor —pessoas mais qualificadas do que nós no tema já o fizeram, dentro e fora do jornal.

No entanto, manifestamos nosso descontentamento com o padrão que vem se repetindo nos últimos meses.

Em mais de uma ocasião recente, a Folha publicou artigos de opinião ou colunas que, amparados em falácias e distorções, negam ou relativizam o caráter estrutural do racismo na sociedade brasileira. Esses textos incendeiam de imediato as redes sociais, entrando para a lista de mais lidos no site. A seguir, réplicas e tréplicas surgem, multiplicando a audiência. A controvérsia então se estanca e morre, até que um novo episódio semelhante surja. Antes do artigo em questão, colunas de Leandro Narloch e Demétrio Magnoli cumpriram esse papel.

Acreditamos que esse padrão seja nocivo. O racismo é um fato concreto da realidade brasileira, e a Folha contribui para a sua manutenção ao dar espaço e credibilidade a discursos que minimizam sua importância. Dessa forma, vai na contramão de esforços importantes para enfrentar o racismo institucional dentro do próprio jornal, como o programa de treinamento exclusivo para negros.

Reconhecemos o pluralismo que está na base dos princípios editoriais da Folha e a defesa que nela se faz da liberdade de expressão.

No entanto estes não se dissociam de outros valores que o jornalismo deve defender, como a verdade e o respeito à dignidade humana. A Folha não costuma publicar conteúdos que relativizam o Holocausto, nem dá voz a apologistas da ditadura, terraplanistas e representantes do movimento antivacina.

Por que, então, a prática seria outra quando o tema é o racismo no Brasil?

Se textos como o de Antonio Risério atraem audiência no curto prazo, sua
consequência seguinte é minar a credibilidade, que é, e deve ser, o pilar máximo de um jornal como a Folha.

Por esses motivos, convidamos a uma reflexão e uma reavaliação sobre a forma como o racismo tem sido abordado na Folha. Acreditamos que buscar audiência às expensas da população negra seja incompatível com estar a serviço da democracia.


Assinam esta carta:


Adriana Mattos
Adriano Vizoni
Alfredo Henrique
Aline Mazzo
Amanda Lemos
Amon Borges
Ana Bottallo
Ana Luiza Albuquerque
Andre Ma
rcondes
Andressa Motter
Anelise Gonçalves
Angela Boldrini
Angela Pinho
Anna Virginia Balloussier
Artur Rodrigues
Bárbara Blum
Beatriz Izumino
Bianka Vieira
Bruna Borges
Bruno B. Soraggi
Bruno Benevides
Bruno Molinero
Bruno Rodrigues
Camila Gambirasio
Carolina Daffara
Carolina Linhares
Carolina Moraes
Catarina Ferreira
Catarina Pignato
Clauber Larre
Clayton Castelani
Cristiane Gercina
Cristiano Martins
Cristina Camargo
Cristina Sano
Dani Avelar
Dani Braga
Daniel E. de Castro
Daniel Mariani
Daniel Mobilia
Daniela Arcanjo
Danielle Brant
Danilo Verpa
David Lucena
Débora Melo
Diana Yukari
Eduardo Marini
Eduardo Moura
Emannuel Gonçalves Gomes
Fábio Pupo
Fernanda Brigatti
Fernanda Giulietti
Fernanda Mena
Fernanda Perrin
Flávia Faria
Flávia Mantovani
Gabriel Cabral
Gabriela Bonin
Géssica Brandino
Giovanna Stael
Giuliana de Toledo
Giuliana Miranda
Guilherme Botacini
Guilherme Garcia
Guilherme Seto
Gustavo Fioratti
Gustavo Queirolo
Havolene Valinhos
Heloísa Lisboa
Henrique Santana
Irapuan Campos
Isabela Palhares
Isabella Menon
Jairo Malta
Jéssica Maes
João Gabriel
João Gabriel Telles
João Pedro Pitombo
João Perassolo
José Marques
Julia Chaib
Karime Xavier
Karina Matias
Kleber Bonjoan
Laíssa Barros
Laura Lewer
Leonardo Diegues
Leonardo Sanchez
Lucas Alonso
Lucas Brêda
Luís Curro
Luiz Antonio Del Tedesco
Maicon Silva
Manoella Smith
Marcelo Azevedo
Marcelo Rocha
Marciana de Barros
Maria Ap. Alves da Silva
Mariana Agunzi
Mariana Arrudas
Mariana Goulart
Mariana Zylberkan
Marília Miragaia
Marina Consiglio
Marina Lourenço
Marlene Bergamo
Mateus Bandeira Vargas
Matheus Moreira
Matheus Rocha
Matheus Teixeira
Mathilde Missioneiro
Maurício Meireles
Mayara Paixão
Melina Cardoso
Mônica Bento
Naná DeLuca
Natália Cancian
Natália Silva
Nathalia Durval
Nicollas Witzel
Otavio Valle
Paola Ferreira Rosa
Patricia Pamplona
Paula Soprana
Paulo Batistella
Paulo Saldaña
Pedro Ladeira
Pedro Lovisi
Phillippe Watanabe
Priscila Camazano
Ranier Bragon
Raphael Hernandes
Raquel Lopes
Rebeca Oliveira
Regiane Soares
Renan Marra
Renata Galf
Renato Machado
Ricardo Balthazar
Rivaldo Gomes
Rodrigo Sartori
Ronny Santos
Rubens Alencar
Salvador Nogueira
Samuel Fernandes
Sílvia Haidar

Silvia Rodrigues
Tatiana Harada
Tayguara Ribeiro
Thea Severino
Thiago Amâncio
Thiago Bethônico
Tiago Ribas
Victor Lacombe
Victoria Azevedo
Victoria Damasceno
Vitor Moreno
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