Memória e verdade

A escravidão na Amazônia: livro denuncia quatro décadas de exploração na região

Relatos colhidos e preservados por defensores de direitos humanos retratam o sistema sofisticado de exploração em fazendas que recebiam financiamento público da ditadura. E mostra mudanças e limites de políticas públicas

Sergio Carvalho/MTE
Sergio Carvalho/MTE
Livro conta histórico de exploração desde o período da ditadura. Situação que permanece até hoje, embora com alguns avanços

São Paulo – Violências psicológicas e físicas e assassinatos são as verdadeiras marcas dos projetos desenvolvimentistas patrocinados pela Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia, a Sudam, criada pela ditadura civil-militar (1964-1985). Esse é o mote do livro recém-lançado (editora Mauad X) A escravidão na Amazônia, que detalha quatro décadas da exploração na região a partir de depoimentos de fugitivos e libertos de fazendas no sul do Pará.

Colhidos por defensores de direitos humanos que resistiam na região, os relatos mostram que o projeto de “ocupação” da Amazônia foi um desastre absoluto tanto do ponto de vista ambiental, trabalhista e da concentração fundiária. Além de ter alimentado com dinheiro público práticas de trabalho escravo

A obra é assinada pelos pesquisadores Ricardo Rezende Figueira, Adonia Antunes Prado e Rafael Franca Palmeira, que combinam também suas impressões sobre o tema. Trata-se de estudo desenvolvidoa partir de documentos da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que nas décadas de 1970 e 1980 era uma das poucas instituições que denunciam os crimes no campo. O livro também tem como fonte acervos do grupo de pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo, do Núcleo de Estudos em Políticas Públicas e Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), criado por Figueira nos anos 2000. 

O horror da ditadura

“A partir de 1977 até o final de 1996 eu morei lá (no sul do Pará). E no escritório da Comissão Pastoral da Terra e na minha casa, éramos procurados por pessoas que fugiam das fazendas e que temiam ser mortas. Muitas que foram capturadas na fuga foram assassinadas, era um ambiente terrível. E quando nós a recebíamos, precisávamos documentar porque queríamos denunciar esses fatos. A gente ia denunciar não aquele velho empresário de chapéu espória, mal informado. Nós estávamos diante do maior capital financeiro industrial envolvido com o crime. Eram grandes empreendimentos que no Sul do Brasil, por exemplo, eram da área industrial, faziam carros, ou da área financeira, de bancos. Eles começaram na Amazônia criando gados, com o nosso dinheiro, de dedução de impostos, empréstimos com uma taxa de juro negativa. E as essas pessoas que fugiam contavam para a gente essas histórias.”

Padre, professor, antropólogo e coordenador do grupo de pesquisa, Figueira concedeu entrevista à repórter Marilu Cabañas, do Jornal Brasil Atual, em que contou que desde aquele tempo tinha a esperança de que um dia a universidade brasileira trataria desse tema. Por conta disso, mesmo com o cerco dos militares, ele conta que os defensores de direitos humanos conseguiram driblar os riscos, autenticando os relatos em cartórios e fazendo cópias deles e enviando a diferentes cidades. “Começamos a organizar e proteger esse material”, explica. 

Escravidão aos longo de 40 anos

Na mudança para o Rio de Janeiro, após 1996, o religioso criou grupo de pesquisa sobre trabalho escravo contemporâneo. E, com a sua equipe, selecionou os documentos relativos a este que é o primeiro período definido no livro. “Há a suspeita de que talvez na Amazônia, por ano, houvesse 100 mil pessoas escravizadas. Normalmente eram pessoas de fora, aliciadas em outras regiões do Brasil. Esse foi o momento mais duro”, descreve o autor. 

Os 40 anos dos depoimentos transcritos na obra também refletem as mudanças nas políticas públicas e no tratamento da escravidão. O segundo momento, que trata da chamada Nova República, a partir de 1985, por exemplo, foi de “muita esperança de que o problema seria resolvido”. “Mas foi desanimador. Políticas públicas não foram formuladas e a escravidão não foi reconhecida”, resume Figueira. A primeira vez que o governo brasileiro reconhece em instância internacional o problema só ocorre em 1992. Na ocasião, o embaixador do Brasil na ONU era Celso Amorim, e o padre foi convidado pela Federação Internacional dos Direitos Humanos a representar a CPT no órgão, onde fez a denúncia da escravidão e foi respaldado pelo diplomata brasileiro. 

Dois anos depois, o então presidente da República Fernando Henrique Cardoso também reconheceu o crime, em entrevista a uma rádio. A partir daí, de acordo com o pesquisador, legislações começaram a ser criadas. O livro acompanha até o final dos governos de Luiz Inácio Lula da Silva, considerados por Figueira os mais importantes em termos de políticas públicas. “Se aprova o primeiro Plano Nacional pela Mitigação do Trabalho Escravo, se constitui um pacto empresarial contra o trabalho escravo, foram muitas medidas”, comenta. 

Raízes do problema

O livro observa, no entanto, que apesar dos avanços legislativos, o problema ainda persiste. A avaliação final do padre e professor é que a raiz do problema, a desigualdade social, também precisa ser atacada.

“Mesmo com tantas medidas e punições, são mais de 50 mil pessoas resgatadas em condições de trabalho escravo. E a escravidão aparece em São Paulo, no Rio de Janeiro, com estrangeiros, brasileiros, na costura e na construção civil, na telefonia, no comércio, explodem casos também no serviço doméstico. E não é que não houvesse antes, só que não era conhecido. Agora é porque onde há pobreza, miséria e desigualdade social, há sempre pessoas vulneráveis ao aliciamento. As pessoas se submetem a um convite que pode ser perigoso, e mesmo que elas saibam disso, ela não tem escolha, então corre esse risco”, aponta. 

Leia mais: Combate ao trabalho escravo está em risco com Bolsonaro e ruralistas

Redação: Clara Assunç˜ão


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