História brasileira

Arquivo Nacional: memórias reveladas, preservadas e para alguns ameaçadas

Governo nomeou para o comando da instituição, de 180 anos, um advogado ligado à área de segurança. Entidades questionam qualificação e temem por documentos

Tomaz Silva/Agência Brasil
Tomaz Silva/Agência Brasil
Criado ainda no tempo do Império, Arquivo Nacional tem 1,7 milhão de fotografias e mais de 100 mil livros, entre outros documentos

São Paulo – Surgido em 1840 como Arquivo Público do Império (a partir do Regulamento nº 2, de janeiro de 1838), o Arquivo Nacional é o principal depositário de documentos no país. Tem 1,7 milhão de fotografias e negativos e 112 mil livros (sendo 8 mil raros), entre outras publicações, charges, cartazes, gravuras, mapas, filmes, áudios. Tesouros públicos. Nos últimos tempos, mudanças na instituição provocaram receio de que parte desse conteúdo possa se perder.

O Ministério Público Federal (MPF) chegou, inclusive, a abrir uma investigação, segundo informa a CNN. O motivo é a nomeação, em 18 de novembro, de Ricardo Borda D’Água de Almeida Braga para o cargo de diretor-geral do Arquivo Nacional, entidade que é vinculada ao Ministério da Justiça e da Segurança Pública. Imediatamente, passou a se discutir a qualificação do novo diretor, que substituiu Neide De Sordi, bibliotecária de formação. Advogado, Borda D’Água é ligado à área de segurança. Foi subsecretário de Prevenção à Criminalidade, na Secretaria de Estado de Segurança Pública do Distrito Federal. Também trabalhou como gerente regional de Segurança do Banco do Brasil no Rio de Janeiro. Até recentemente, era dono de uma empresa de consultoria no setor.

Preocupação com documentos

Profissionais das áreas de arquivos, história e pesquisa protestaram contra a nomeação. “No Brasil existem inúmeros profissionais com expertise necessária, e não é razoável que o Arquivo Nacional seja dirigido por indivíduo em cujo currículo não há qualquer menção de atuação com gestão de documentos e/ou formação em arquivologia, ciência da informação, história, patrimônio cultural, memória, preservação e áreas correlatas”, afirma manifesto assinado por dezenas de entidades de todo o país. Confira aqui a íntegra do documento.

O historiador e professor Luiz Felipe de Alencastro, integrante da Comissão Arns, cita a presença de documentos sensíveis no Arquivo Nacional. Como os relacionados à ditadura, do Serviço Nacional de Informações, do Conselho de Segurança Nacional e da Comissão Nacional da Verdade. “O que pode acontecer com essa documentação? A gente não sabe. Ela não pode ser destruída. Mas pode, sim, ser transferida, por um ato do diretor do Arquivo, para outro lugar público, pruma instalação militar, uma caserna, por exemplo, e o acesso dos pesquisadores e a conservação desses documentos fica submetida ao astral que existir no Brasil ou no comando daquela caserna”, disse Alencastro, em entrevista a Eleonora de Lucena e Rodolfo Lucena no canal Tutaméia TV.

Queima de arquivo?

Para o jornalista e escritor Ruy Castro, o risco de destruição é real. Em artigo recente na Folha de S.Paulo, ele chamou a atenção para o currículo de novo diretor, que inclui participação em clube de tiro. “Com todo esse cartel, o cidadão parece entender de armas. Mas o Arquivo Nacional não é um estande de tiro”, escreveu, apontando uma possível “queima de arquivo”.

“Como não é possível rasurar os documentos, a solução é destruí-los”, prosseguiu Ruy Castro, autor de biografias de Mané Garrincha e Nelson Rodrigues, entre outras obras. “Para isso, Bolsonaro autorizou as repartições federais a requisitar documentos do Arquivo Nacional e eliminá-los sem qualquer controle. Melhor ainda se forem os que se referem à ditadura militar, perigosamente à disposição dos estudiosos.”

Agenda da nova direção do Arquivo Nacional incluiu reunião sobre um banco de dados relacionado à ditadura: qual a finalidade? (Reprodução)

Na última terça-feira (30), a nova direção do Arquivo Nacional tinha em sua agenda uma reunião interna com o tema “Memórias Reveladas”. É um banco de dados que reúne exatamente documentos e informações diversas sobre o regime autoritário. Por meio da assessoria, a direção da entidade foi procurada para saber o que se discutiu nessa reunião, mas não houve resposta até a conclusão deste texto.

“Comissão de salvação da memória”

“É preciso que haja uma espécie de comissão de salvação da memória brasileira”, afirma Alencastro. O historiador fez um apelo público a entidades como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e a Academia Brasileira de Ciência, para que fiquem “de plantão” a fim de evitar situações que causem danos irreversíveis. Ele lamenta que, mais uma vez, o Arquivo Nacional se torne objeto de barganha política. Mas o quadro atual é pior, acrescenta. Para o historiador, o que acontece na instituição se insere em uma “política de perseguição científica e de espírito antirracionalista desse governo”.

O Arquivo Nacional tem outras atribuições legais. É responsável, por exemplo, pela Comissão de Coordenação do Sistema de Gestão de Documentos e Arquivos da Administração Pública Federal (Siga), conforme determina o Decreto 10.148, de 2019. Ao deixar uma mensagem de despedida, a ex-diretora Neide De Sordi propôs uma reflexão, ao lembrar que cabe ao Arquivo promover a cidadania “por meio da guarda, preservação e difusão” da história. “Essas tarefas são extremamente relevantes, mas somente terão sucesso pleno a partir do compromisso do Estado e da participação atenta da sociedade.”


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