Quarentena da Resistência

‘Uma de cada lugarzinho foi contando sua história…’ E as catadoras lançam seu livro

Inspiradas em Carolina Maria de Jesus, 21 mulheres escreveram para contar sobre seu trabalho e suas vidas. E sair da invisibilidade

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A autora de 'Quarto de Despejo', lançado em 1960, inspirou as catadoras, que durante meses se reuniram virtualmente para ler, trocar ideias e participar de oficinas

São Paulo – Ana Maria, Andreia, Claudia, Clotilde, Edilaine, Francisca, Gislaine, Ivanilda, Luciana, Maria Benedita, Maria da Penha, Maria das Dores, duas Maria Isabel, Maria Lucia, Maria Mônica, Maria Patrícia, Nair, Patrícia, Silvana, Viviane. São 21 mulheres que ganham a vida como catadoras de materiais recicláveis, em várias cidades, muitas chefes de família, negras na maioria. Que durante as dores e restrições da pandemia se uniram ainda mais, desta vez em torno de um projeto inesperado: escrever um livro.

E assim surgiu Quarentena da Resistência, resultado de muitas trajetórias, algumas histórias em comum. De exclusão, vulnerabilidade, esquecimento e sonhos. “Mas nós vamos sair da invisibilidade?”, quis saber Viviane Conceição de Souza, 44 anos, catadora há 12 e orgulhosa de sua atividade. “É um trabalho transformador”, diz.

Quarto de Despejo

A inspiração para produzir o livro, lançado ontem (25) à noite, veio de Carolina Maria de Jesus e seu Quarto de Despejo, lançado em 1960. “As catadoras, trabalhadoras severamente atingidas pela pandemia, em sua maioria negras, encontraram um lugar de fortalecimento e luta pela palavra e compartilhamento das dores e afetos”, afirma a procuradora Elisiane dos Santos, do Ministério Público do Trabalho de São Paulo (MPT-SP), uma das idealizadoras do projeto, que inclui ainda o documentário As Recicláveis. “Vocês são o o símbolo da luta das trabalhadoras negras deste país”, disse ontem, ainda emocionada, durante a live de lançamento, na quarta edição da Feira Literária de Santo André (Felisa), no ABC paulista, que começa oficialmente nesta sexta-feira (26).

Além do MPT, o livro é iniciativa do escritório brasileiro da Organização Internacional do Trabalho. “A gente sabe o quanto a nossa história é apagada no Brasil”, comentou Thaís Dumêt, oficial da OIT. Durante sete meses, todas as semanas, as 21 mulheres se reuniam virtualmente para ler e participar de atividades como oficinas de texto. Cada um recebeu uma bolsa mensal, para custeio de internet e de cestas básicas.

Aproximação pela literatura

O professor Eduardo Coelho, que coordenava oficinas, conta que o primeiro passo foi fazer um mapeamento “das dificuldades, desejos, dos interesses dessas mulheres”. Algumas questões eram recorrentes: violência doméstica, invisibilidade, trauma escolar. “A gente buscou essa aproximação pela literatura. Foi um momento importantíssimo e muito comovente desse processo. Não apenas aprenderam, mas também nos ensinaram muito. Uma dignidade latejante que a todo momento se mostrava em suas falas. Elas se reconheciam e se fortaleciam entre elas.”

Viviane e Clotilde, catadoras e agora escritoras: realidades de muitas mulheres em um trabalho ‘transformador’ (Reprodução YouTube)

O projeto que dá nome ao livro uniu ainda a Festa Literária das Periferias (Flup) e a Cooperativa Central do ABC (Coopcent ABC), com apoio da Universidade Federal do ABC (UFABC) e laboratórios da Faculdade de Letras da Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com atividades de capacitação e formação. Já a Felisa, a feira literária que hospedou o lançamento, é resultado de parceria entre os sindicatos dos Bancários e dos Professores do ABC, ao lado da editora Coopacesso, que publica o livro.

“A gente sempre almejou que as pessoas pudessem potencializar os talentos que já existem”, conta a pedagoga Daniele Salles, representante da Flup. “Essas mulheres conseguem fazer um quilombo, dar voz a uma classe que vem sofrendo com o processo de invisibilização e emudecimento ao longo da história.”

Inclusão social

No Brasil, a Lei 12.305, de 2010, instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos. Um dos itens do artigo 15 fala em “metas para a eliminação e recuperação de lixões, associadas à inclusão social e à emancipação econômica de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis”. Mas as entidades do setor lembram que a atividade não é implementada em muitos municípios, e os trabalhadores ainda sofrem com o preconceito, apesar da relevância não apenas socioeconômica, mas ambiental, do setor.

“Esse projeto foi um presente pra gente. Para mim, pessoalmente, foi um processo de cura”, conta Clotilde da Silva, de Maracaí (SP). “São histórias reais, são realidades de muitas mulheres.” Como disse Jennifer Thaís, 26 anos, de Itabirito (MG), pelo Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), “uma de cada lugarzinho foi contando sua história…”


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