Lutas inglórias

Ondas da história: marinheiro que liderou a Revolta da Chibata pode entrar em livro de heróis da pátria

Projeto já passou pelo Senado e chegou à Câmara. Mas a Marinha é contra a homenagem

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Depois de liderar a revolta dos marinheiros contra maus-tratos, João Cândido foi expulso da corporação e preso durante dois anos

São Paulo – Ocorrida há 111 anos, completados na última segunda-feira (22), a chamada Revolta da Chibata, contra maus-tratos aos marinheiros, ainda parece fazer parte daquele rol de acontecimentos que muitos querem ver excluídos, ou ignorados, da história brasileira. Isso está acontecendo novamente, em um projeto que homenageia o marinheiro João Cândido Felisberto, líder daquele movimento.

O Projeto de Lei do Senado (PLS) 340/2018, do agora ex-senador Lindbergh Farias, foi aprovado em 28 de outubro na Comissão de Educação, Cultura e Esporte da Casa, após receber parecer favorável de Paulo Paim (PT-RS). No último dia 17, seguiu para análise da Câmara. Pela proposta, o nome do marinheiro será inscrito no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. “João Cândido é um agente social em defesa da dignidade e da justiça e de melhores dias para o povo sofrido. Ele é um símbolo”, diz Paim.

Mestre-sala dos mares

A história também inspirou a canção O Mestre-sala dos Mares, composta nos anos 1970 por João Bosco e Aldir Blanc. À época, a palavra “almirante” teve de ser substituída por “navegante”. O navegante negro. O gaúcho João era filho de ex-escravos e trabalhou durante mais de 15 anos na Marinha de Guerra.

Apesar da aprovação, existe uma pressão em curso para que o projeto não vá adiante. E vem justamente da Marinha.

O senador Izalci Lucas (PSDB-DF), que votou a favor, chegou a ler uma nota da instituição, que é contrária ao entendimento de que a revolta de 1910 tenha sido um “ato de bravura”. Teria havido quebra de hierarquia. Ainda segundo a Marinha, “reconhecer erros não justifica avalizar outros e, por conseguinte, exaltar as ações dos revoltosos”. Paim ressaltou que respeita a instituição e lembra que no documento a própria Marinha reconhece que discordou da chibata.

João Cândido que morreu na pobreza em 1969, é considerado um símbolo da luta por justiça (Reprodução/Pref. São João de Meriti)

Personagem histórico

O líder do PT no Senado, Paulo Rocha (PA), disse que foi procurado pelo comando da força armada. “Uma homenagem a João Cândido não significa uma posição de aversão à Marinha. Nós consideramos a Marinha uma das forças armadas mais próximas da situação de nosso povo. (…) Porque ele não atuou só como marinheiro; ele foi um personagem muito importante na luta dos negros, dos povos daquela época.”

Mesmo proibidos, os castigos físicos eram praticados contra os soldados, negros na maioria. O estopim teria sido uma sequência de chibatadas (fala-se em 250) a um marinheiro acusado de agredir um oficial. Encouraçados chegaram a apontar seus canhões para a Baía da Guanabara. O movimento terminou com uma promessa de anistia, que nunca veio. Na verdade, veio apenas em 24 de julho de 2008, com a Lei 11.756, concedendo anistia post mortem a João Cândido.

Expulso, preso e pobre

Depois da revolta, o líder foi expulso da Marinha e permaneceu preso durante dois anos. Autor de livro sobre a revolta publicado em 1960, que trouxe luz sobre o tema, o jornalista Edmar Morel conta em outro livro, de memórias (Histórias de um Repórter), que enquanto escrevia foi procurar João Cândido em busca de informações. O ex-marinheiro morava em São João de Meriti, na Baixada Fluminense.

“Não era uma habitação digna da espécie humana: um casebre com esgoto a céu aberto”, descreveu o jornalista. “A pobreza e o abandono eram a tônica do lugar.” João Cândido sobrevivia carregando cestos de peixe. Ele morreu em dezembro de 1969.

Tema tabu

Morel conta que o assunto sempre foi tabu. “A Marinha não tinha interesse em ver a rebelião divulgada, ainda mais num livro. Para citar um exemplo: Aparício Torelly, o inconfundível Barão de Itararé, ensaiou escrever três reportagens sobre o movimento. Foi sequestrado no seu Jornal do Povo por um grupo de oficiais da Marinha, sendo espancado na Barra da Tijuca, onde foi deixado nu e ferido na cabeça. Foi por isso que ele colocou uma placa na porta da redação: ‘Entre sem bater’.”

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A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) fez um apelo aos parlamentares para que o projeto seja aprovado. “Não só como ato de justiça e reconhecimento à luta do ‘Almirante Negro’ e de seus companheiros na defesa dos direitos humanos e de uma sociedade mais civilizada, como também no impacto positivo que a medida pode ter na condenação de atos de violência contra os segmentos mais vulneráveis da sociedade brasileira”, afirma o presidente da entidade, Paulo Jerônimo.


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