História contra a opressão

Dossiê revela origens da Consciência Negra sob o apartheid da África do Sul

Iniciativa agrupa uma série de projetos iniciados na África do Sul em 1972, que serviram para a implementação prática da filosofia da consciência negra que devolveu autonomia e a libertação da dominação branca

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Dossiê detalha parte da história de Steve Biko que formou a Organização dos Estudantes Sul-Africanos, a Saso, que mais tarde construiu a ideologia da consciência negra

São Paulo – Com o objetivo de registrar e lembrar do Movimento da Consciência Negra que ecoou da África do Sul para o mundo, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social lançou nesta terça-feira (14) um dossiê público sobre os Programas da Comunidade Negra: a manifestação prática da filosofia da Consciência Negra. O documento compila uma série de projetos iniciados em 1972, ainda sob o regime do apartheid sul-africano, que serviram como base para a implementação do movimento que buscava possibilitar às pessoas negras o poder de se tornarem autossuficientes, politicamente conscientes e condutores de seu próprio desenvolvimento e libertação. 

O dossiê mostra que esse Programa da Comunidade Negra (BCP, na sigla em inglês), incluía a criação de publicações e pesquisas, centros de saúde, fábricas para empregar os economicamente marginalizados e um fundo para atender às necessidades básicas de egressos do sistema penal, assim como doações para outros projetos. E detalha parte da história de Steve Biko, o então estudante de Medicina que, em julho de 1968, formou a Organização dos Estudantes Sul-Africanos, a Saso, na sigla em inglês.

A Saso foi o movimento estudantil exclusivo para pessoas negras com intuito de acabar com as dificuldades de integração simbólica e a liderança liberal branca. E que evoluiu, mais tarde, para a construção da ideologia da consciência negra. 

A resistência

De acordo com a publicação, o movimento clamava não apenas por uma consciência crítica das relações sociais entre os oprimidos. Mas sim pela necessidade de traduzir essa consciência em programas ativos de libertação da dominação branca. O argumento era “que as pessoas que não conheciam nada além de desprezo e humilhação precisavam de símbolos de esperança que os tirasse do desespero e os empoderasse para libertarem a si mesmos”. Ou, nas palavras do próprio Biko, “no cerne desse tipo de pensamento está a conscientização dos negros de que a arma mais potente nas mãos do opressor é a mente dos oprimidos”. 

Na luta contra o regime de segregação racial do apartheid, o líder estudantil defendia uma libertação primeiramente psicológica e, na sequência, física do povo negro. “Para tomar consciência de sua própria identidade”, dizia. Com o trabalho de muitos militantes, o BCP foi criado para beneficiar e empoderar essa população. Já que na época ela estava marginalizada do acesso à saúde, economicamente e de necessidades básicas. Entre os programas, estava o Centro de Saúde Comunitário Zanempilo, em uma zona rural de Zinyoka, que continua a funcionar até o dias de hoje. 

Repressão

O dossiê pontua, contudo, que um “preço alto foi pago por esse período de criatividade política”. Com muitos militantes do movimento detidos, condenados à prisão e banidos em 1977 pelo governo supremacista branco do Partido Nacional (PN). De inspiração nazista, a sigla chegou ao poder em 1948 e estabeleceu oficialmente o regime de segregação racial do apartheid. Em setembro de 1977, militantes do Movimento da Consciência Negra também foram levados a julgamento e Biko foi preso, torturado e assassinado no cárcere. 

A publicação também resgata que a luta desses ativistas se deu já dentro de um contexto de inflexão do regime do apartheid, marcado pela Campanha de Resistência à Lei do Passe. A norma determinava onde as pessoas negras poderiam viver e trabalhar e até qual o tipo de emprego que poderiam ter. E, na ausência do porte desta caderneta, elas poderiam ser levadas presas. De forma pacífica, o presidente do Congresso Pan-Africanista (CPA), fundado em 1959, Robert Sobukwe lançou, um ano depois, a campanha de antipasse que incentiva a população negra a deixar as cadernetas em casa, em forma de protesto, e a se sujeitar à prisão. 

O legado dos programas

Dias depois, Robert Sobukwe liderou uma contestação em massa contra o passe, que levou uma multidão às ruas do município de Sharpeville, perto de Joanesburgo. Em resposta, a polícia sul-africana branca atirou como os manifestantes negros que protestavam de forma pacífica e sem armas. Ao todo, 69 pessoas foram mortas e outras 180 saíram feridas. A maioria das vítimas eram mulheres e crianças que foram baleadas pelas costas, quando já tentavam fugir. A matança do Estado marcou o que passou a ser conhecido como o Massacre de Sharpeville. Mas abriu também uma crise política na África do Sul, que culminou, anos depois, na queda do regime segregacionista, em 1994. 

A avaliação do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social é que o Movimento da Consciência Negra teve impacto semelhante. Ao resgatar a história no dossiê, a instituição internacional mostra que essa ideologia “permanece presentes nas formas atuais de organização e luta popular”. A publicação adverte que “mesmo que a repressão tenha sido draconiana, a resistência continuou de várias maneiras”. Até hoje, em todo o mundo, os Programas da Comunidade Negra continuam inspirando militantes.”Seu papel na história da África do Sul deve ser estudado, registrado e lembrado”, conclui o dossiê. 

Você pode conferir o dossiê na íntegra, clicando aqui

Redação: Clara Assunção – Edição: Helder Lima


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