Em São Paulo

Três de cada quatro pessoas presas na pandemia foram ‘deixadas para adoecer e morrer’, diz IDDD

Juízes paulistas contrariaram CNJ e mantiveram prisões indevidamente. Relatório mostra que “magistrados fecharam os olhos” para a superlotação e insalubridade das cadeias do estado

Luiz Silveira/Agência CNJ
Luiz Silveira/Agência CNJ
Estudo do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) mostra que a Recomendação 62 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) não tem sido cumprida por parte dos magistrados do estado de São Paulo

São Paulo – Estudo do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) mostra que a Recomendação 62 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que traz orientações a tribunais para conter o avanço da pandemia de covid-19 nas prisões, não tem sido cumprida por parte dos magistrados do estado de São Paulo. De cada quatro pessoas que deveriam ter deixado a prisão no primeiro ano da crise sanitária, três foram mantidas atrás das grades. 

De acordo com o relatório Justiça e Negacionismo: Como os Magistrados Fecharam os Olhos para a Pandemia nas Prisões, entre 2 de abril do ano passado e 18 de janeiro deste ano, para apenas 118 casos, o equivalente a 26% do total, as orientações foram seguidas. Para estes, foi concedida liberdade provisória – com ou sem imposição de medidas cautelares –, ou tiveram o regime de reclusão substituído por prisão domiciliar. No entanto, outras 330 pessoas, 74% dos casos, tiveram pedido de liberdade negado, embora cumprissem, segundo o IDDD, os requisitos do CNJ. O instituto destaca ainda que os pedidos traziam “justificativas concretas dos riscos aos quais os detentos estavam expostos”. 

Editada em 17 de março de 2020, a recomendação trata de penas alternativas para detentos do grupo de risco da doença do novo coronavírus. Nesse caso, maiores de 60 anos, gestantes, lactantes e pessoas com comorbidades. A medida foi baseada no “estado de coisas inconstitucionais” nas prisões, reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ainda em 2015 e agravado com a pandemia. E aponta que os presídios brasileiros “criam ambientes com maior predisposição para a proliferação do vírus” por conta de celas insalubres, superlotadas, pouco iluminadas e ventiladas que “não garantem o direito à vida e à saúde” dos detentos. 

Leia mais: Manter presas pessoas de grupos de risco da covid-19 é ‘impor sentença de morte’

Racismo

Como medida de desencarceramento, a recomendação incluiu a revisão de penas de acusados por crimes praticados sem violência ou grave ameaça. Porém, o IDDD relata que para garantir o relaxamento das penas firmou um mutirão em parceria com a Defensoria Pública de São Paulo. O órgão repassou à entidade 448 processos, dentro do escopo da recomendação, de 47 unidades prisionais localizadas onde não há comarca da Defensoria instalada. Os casos foram analisados por 103 associados do IDDD, um total de 92 advogados e 11 estudantes de direito.

Durante a defesa, o grupo observou que os processos de pessoas brancas tiveram mais decisões favoráveis do que o de pessoas negras. Em 214 casos atendidos, foram 30,4% brancos beneficiados, antes 24,3% dos 202 assistidos negros. O mutirão atendeu ainda 57 idosos, mas apenas 14 deles foram postos em liberdade ou prisão domiciliar no período observado. 

Atuação contraditória

O resultado do mutirão, para o IDDD, revelou uma atuação “contraditória” do Poder Judiciário. “Célere em reconhecer o risco oferecido pela pandemia ao optar por audiência e outros atos processuais virtuais”, mas que “nem de longe foram empreendidos para resguardar a saúde e a vida das pessoas presas”, observa a entidade.

Além do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), os advogados analisaram os recursos remetidos ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o STF. E notou que, mesmo entre as 118 pessoas soltas, “só o foram após 207 pedidos de liberdade negados em instâncias anteriores”. Entre as decisões favoráveis, o relatório também mostra – com espanto – que, em mais da metade delas (52,5%), o magistrado sequer mencionou a pandemia para correção da pena. 

Para os advogados, “isso pode demonstrar uma resistência por parte dos magistrados em reconhecer o fato de que as prisões brasileiras consistem em ambiente de elevado risco para a contaminação da covid-19 – como a própria Recomendação o faz – ao mesmo tempo que reforça a falta de necessidade da manutenção da privação da liberdade dos acusados, ainda que não houvesse pandemia”, escrevem. O instituto observa que há um número desconhecido de pessoas detidas que já podem ter o direito à liberdade, mas seguem presas porque a situação ainda não foi reavaliada por juízes e desembargadores.

Juízes contrariam CNJ

À época do relatório, eram cerca de 760 mil encarcerados no Brasil, quase 231 mil a mais do que a capacidade das unidades prisionais. O estudo mostra ainda que a recomendação do CNJ foi mais utilizada pelos magistrados para negar a liberdade provisória ou prisão domiciliar. A medida foi expressamente citada em 28% das decisões favoráveis, contra 39% das decisões denegatórias. 

Em um dos casos, um juiz de primeira instância de Itapira, no interior de São Paulo, ao negar a revisão da pena a um jovem negro de 19 anos, acusado de tráfico de drogas, supôs que “um indivíduo que não tem respeito pela lei brasileira, também não o terá pelas orientações de isolamento social das autoridades de saúde, inviabilizando todo o esforço da população para contenção do vírus”. 

Mortes evitáveis

No presídio em que o jovem estava, a taxa de contágio era à época de 35%, cerca de três vezes maior do que a taxa de infecção em todo o município de Itapira. A fragilidade da decisão só foi reconhecida no STJ, que deferiu a liberdade provisória ao jovem. 

O descumprimento da recomendação do CNJ, segundo o IDDD expõe “o papel das autoridades na produção de mortes evitáveis durante essa calamidade”. A avaliação geral é que, dentro das prisões, a população “foi abandonada à própria sorte”, o que “ganhou contornos ainda mais cruéis” no contexto da pandemia, afirmam os advogados. “A ausência dos órgãos públicos na proteção das pessoas privadas de liberdade – e que, frise-se, estão sob sua responsabilidade –, indica que elas estão sendo deixadas para adoecer e morrer”, contestam. 

Até esta quinta (12), de acordo com boletim da Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo (SAP), o Estado já havia registrado a morte de 79 custodiados e 119 servidores. Entre a população carcerária, 14.843 casos de covid-19 foram confirmados e mais 12 pessoas estão com suspeita. Pelo menos 4.307 também testaram positivo para a doença do novo coronavírus e 69 estão afastados com suspeita. 


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