Nesta quarta

STF retoma julgamento que define futuro das terras e civilizações indígenas do país

Projeto apoiado por ruralistas altera regras para demarcação, pode levar à perda da posse e permite exploração de recursos naturais em terras indígenas

© Kamikia Kisedje / Acampamento Pela Vida
© Kamikia Kisedje / Acampamento Pela Vida
Povos indígenas de todo o país estão reunidos em Brasília, no Acampamento Luta pela Vida, para acompanhar como os ministros do STF decidirão sobre as terras e os direitos dos povos originários

São Paulo – O Supremo Tribunal Federal (STF) reinicia hoje (25), o julgamento que definirá o futuro das demarcações de Terras Indígenas (TIs) no Brasil. Do lado de fora, povos indígenas de todo o país estarão reunidos, no Acampamento Luta pela Vida, que da mesma forma retoma a intensa mobilização realizada em junho no Levante pela Terra.

O STF vai analisar a ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, referente à TI Ibirama-Laklãnõ, onde também vivem os povos Guarani e Kaingang. Em 2019, o STF deu status de “repercussão geral” ao processo, o que significa que a decisão tomada neste caso servirá de diretriz para a gestão federal e todas as instâncias da Justiça no que diz respeito aos procedimentos demarcatórios.

No centro da disputa está a discussão em torno do chamado “marco temporal”, uma tese político-jurídica defendida por ruralistas e setores políticos e econômicos interessados na exploração das terras indígenas. Segundo esta interpretação, os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem em sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Alternativamente, se não estivessem na terra, precisariam estar em disputa judicial ou em conflito material comprovado pela área na mesma data.

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Desigual

Defensores dos povos originários apontam que a tese é injusta, porque desconsidera as expulsões, remoções forçadas e todas as violências sofridas pelos indígenas até a promulgação da Constituição. Além disso, ignora o fato de que, até 1988, eles eram tutelados pelo Estado e não podiam entrar na Justiça de forma independente para lutar por seus direitos.

O julgamento chegou a ser iniciado em plenário virtual no dia 11 de junho, mas foi suspenso por um pedido de destaque do ministro Alexandre de Moraes, que era o primeiro a votar. Os demais ministros sequer chegaram a proferir seus votos. Dias depois, o presidente do Supremo, ministro Luiz Fux, marcou o reinício da apreciação para esta quarta-feira. A sessão de hoje, prevista para iniciar às 14h, ocorrerá também por meio de videoconferência, em função da pandemia de covid-19, e será transmitida pela TV Justiça.

Vigília do povo Guarani Kaiowá em defesa da TI Guiraroka, em frente ao STF (Foto: Tiago Miotto/Cimi)

“Esse julgamento é muito importante para nós e para toda a sociedade, pois os povos indígenas lutam não só pelos seus direitos, mas também pelo meio ambiente. O que nós queremos e precisamos é que o STF garanta nossos direitos, e que sejam reconhecidas as terras que são nossas. O marco temporal é uma afronta aos povos indígenas, que busca tirar o direito dos povos às suas terras tradicionais”, avalia Brasílio Priprá, importante liderança do povo Xokleng.

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O caso em disputa

No julgamento, os ministros vão analisar a determinação do ministro Edson Fachin, de maio do ano passado, que suspendeu os efeitos do Parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU). A norma oficializou o “marco temporal”, entre outros pontos, e vem sendo utilizada pelo governo federal para paralisar e tentar reverter as demarcações.

Na mesma decisão do ano passado, Fachin suspendeu, até o final da pandemia da covid-19, todos os processos judiciais que poderiam resultar em despejos ou na anulação de procedimentos demarcatórios. Essa determinação também deverá ser apreciada pelo tribunal.

Luta de décadas

A TI Ibirama-Laklãnõ está localizada a 236 quilômetros a noroeste de Florianópolis, entre os municípios de Doutor Pedrinho, Itaiópolis, Vitor Meireles e José Boiteux. A área tem um longo histórico de demarcações e disputas, que se arrasta por todo o século 20, período em que foi reduzida drasticamente. Foi identificada por estudos da Fundação Nacional do Índio (Funai) em 2001, e declarada pelo Ministério da Justiça, como pertencente ao povo Xokleng, em 2003. Os indígenas nunca deixaram de reivindicar o direito ao seu território ancestral.

“A forma como o povo Xokleng perdeu o território foi a forma mais violenta, mais vil, mais terrível. Houve, no início do século passado, a demarcação sem critérios técnicos. Perdeu-se, na década de 1920, parte significativa do território. Em 1950, a mesma coisa. Depois, a construção de uma barragem levou as melhores terras. E nesse contexto se dá a disputa do povo Xokleng, para que de fato seja garantida a devolução dessas áreas roubadas”, explica Rafael Modesto, advogado da comunidade Xokleng e também assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Em 2019, o povo Xokleng foi admitido pelo relator do caso, o ministro Edson Fachin, como parte no processo, por ser diretamente afetado pela decisão a ser tomada nesta ação. A admissão foi considerada uma importante vitória para os povos indígenas, que lutam, há décadas, pela efetivação do direito de acesso à justiça garantido a eles na Constituição Federal de 1988.

Resistência até o fim

Centenas de lideranças indígenas estão na capital federal para mais uma ciclo de lutas em defesa de suas terras e de seus direitos constitucionais e humanos. O acampamento Luta pela Vida dá continuidade ao acampamento Luta Pela Terra, em junho, como forma de resistência aos diversos projetos e medidas antiindígenas que vêm sendo tomadas pelo Congresso Nacional e pelo governo federal.

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“Fazemos esse chamado, ainda durante a pandemia, porque não podemos calar diante de um genocídio e um ecocído, que a Terra grita mesmo quando estamos em silêncio”, afirma o manifesto de convocação do Luta pela Vida divulgado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). “Nos sentimos obrigados a nos fazer presente em Brasília, neste cenário tão desolador que está sendo promovido tanto pelo Congresso Nacional, mas principalmente pelo Governo Federal no que tange o direito dos povos indígenas”, disse Dinamam Tuxá, Coordenador da Apib.

Cuidados sanitários contra o coronavírus, como o uso de máscaras e a presença apenas de indígenas imunizados com as duas doses da vacina contra a covid-19, também foram ressaltados pela Apib e devem ser seguidos durante todos os dias da mobilização.

Povos indígenas realizam manifestação nesta sexta (18), em Brasília, contra o marco temporal (Foto: Adi Spezia/Cimi_

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Com Cimi e Apib – Redação e edição RBA: Fábio M Michel