Em São Paulo

Após protestos, pagamentos do Transcidadania serão regularizados até amanhã

Informação é da Secretaria de Desenvolvimento Econômico de São Paulo, que reconheceu atraso no pagamento de quatro beneficiárias

Reprodução Redes Sociais
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Fabyanna cursa o ensino médio e fez curso de banhista de pets: no Transcidadania eu posso terminar meus estudos e receber uma bolsa como ajuda

São Paulo – Fabyanna Benício não ficou calada. Diante do atraso de seu benefício no pagamento do Programa Transcidadania, procurou a Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de São Paulo (SMDHC), mas não conseguiu resolver seu problema. “Precisei articular o mandato da vereadora Juliana Cardoso para que cobrasse a secretaria o atraso do meu pagamento, e também de outras beneficiárias”, explica a mulher transexual. “Tentei por inúmeras vezes falar na coordenação LGBT (da secretaria). Mas todo dia era ‘estamos resolvendo seu problema’. Eu vi que passou uma semana, fez 15 dias, chegou a um mês. Estamos falando de direitos. E não é direito para A ou B, tem de ser direito universal.”

A reportagem procurou a SMDHC, que informou que os pagamentos foram realizados, mas com exceção de quatro beneficiárias que irão receber nesta quinta-feira (22), “em decorrência de ajustes nos trâmites bancários, em virtude de estas participantes já terem passado pelo programa em outras ocasiões”.

Fabyanna falava com a reportagem na tarde de hoje (21) quando foi ao banco e verificou que o valor em atraso já estava depositado em sua conta. “Amanhã vou passar novamente para ver o pagamento deste mês, que deve entrar no dia 22.”

O site da SMDHC informa que o Programa Transcidadania existe para promover a reintegração social e o resgate da cidadania para travestis, mulheres transexuais e homens trans em situação de vulnerabilidade. Atualmente com 510 vagas, a educação é a principal ferramenta. Uma bolsa de R$ 1.160,25 é paga mensalmente para a conclusão do ensino fundamental e médio e qualificação profissional.

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Direito à cidadania

É o que Fabyanna quer, pois, aos 42 anos, está cursando o segundo ano do ensino médio. “Se tiver forças e garra, porque tem de ter muita garra, quero fazer uma faculdade de Veterinária.” Apaixonada por animais, em especial cachorros, ela conta que fez um curso de banhista de petshop e é essa sua ocupação hoje.

Participante do programa por três meses em 2017, ela deixou o Transcidadania porque conseguiu trabalho, mas, de novo desempregada, voltou ao programa – cujo atendimento pelos centros de cidadania elogia muito – há um ano e seis meses. Segundo ela, os atrasos nos pagamentos são recorrentes.

“E jamais deveria acontecer. Isso porque já se sabe de todas as vulnerabilidades que nos assolam, e um atraso dessa proporção causa sérios danos a uma população de travestis e transexuais que necessitam dessas bolsas, assim como eu”, critica. “Não vejo como esmola e sim como direito. Por décadas da invisibilidade que as travestis e transexuais passaram aqui nessa cidade.”

Ex-secretário de Direitos Humanos da gestão Fernando Haddad, responsável pela criação do Transcidadania, Rogério Sottili lembra de uma história para explicar a importância do programa. “Um pouco antes de sair da secretaria recebi um pedido de audiência de três meninas travestis. Elas disseram: ‘viemos te agradecer pelo Trasncidadania e te fazer um convite: lançar uma ONG que vai lutar para o que se transforme em lei na cidade de São Paulo’.

Lançamento do Transcidadania, em 2015 (Foto: Fernando Pereira/ Secom/ PMSP)

Programa único no mundo

Para uma dessas travestis, recorda Sottili, era como a se vida tivesse começado a partir do Transcidadania: “A média de vida de uma travesti, transexual, na cidade de São Paulo não passava de 35 a 40 anos. O Transcidadania, me disse ela, deu-lhe outra perspectiva de vida, de lutar sobrevivência”, relata o ex-secretário. “Esse depoimento diz tudo. É um instrumento que traz cidadania para as pessoas e deve ser visto como política de Estado, e não como programa de governo.”

Rogério Sottili descreve a construção participativa do Transcidadania com toda comunidade LGTB da cidade de São Paulo, professores e dirigentes das escolas municipais. “Tornou-se referência mundial. O governo Barack Obama mandou um assessor especial dele para conhecer o Transcidadania para que fosse identificado formas de desenvolver o programa nos Estados Unidos. É um programa único.” Tanto que, quando foi criado, não foi possível identificar experiências semelhantes em outros países do mundo, não existia. “Então, o cuidado desse programa é fundamental por todos os governos, para todo o setor público. Um programa de todo mundo”, ressalta.

“Esse projeto só foi conquistado com muitas lutas e políticas públicas afirmativas e contínuas da população de travestis e transexuais marginalizadas, por essa sociedade preconceituosa e  transfóbica”, destaca Fabyanna. “Espero que haja mais engajamento das secretarias e menos burocracias pra se resolver algumas falhas no sistema. Visto que, ao meu ver, sobra mais incompetência do que empatia pela causa.”

Ação para fazer valer o direito

Além do mandato da vereadora Juliana Cardoso, uma rede se movimentou para cobrar da prefeitura paulistana a regularização dos pagamentos do Transcidadania. “O pessoal todo do campo progressista fez pressão sobre a prefeitura, entrou em contato e fez as cobranças em conjunto conosco”, diz o bancário André Sardão, conselheiro municipal LGBT. “O conselho municipal contou com a colaboração e pressão da ARTGAY e da secretaria municipal do PT, dos mandatos da vereadora Juliana e da deputada estadual Professora Bebel (PT). Agora iremos acompanhar pra que de fato haja o pagamento e para que atrasos como esse não se repitam”, avisa o integrante do Conselho Municipal de Políticas LGBT. O nome oficial ainda não foi atualizado para LGBTQIA+.

Para Juliana Cardoso, não são coincidência os atrasos nos pagamentos do Transcidadânia. “Na Câmara, é fácil perceber que o prefeito Ricardo Nunes tem se mostrado ao lado de quem prega o preconceito, a insensibilidade para as causas das pessoas trans. Um projeto que pede cotas para transexuais no serviço público, por exemplo, é constantemente atacado nas redes, sem que haja um pronunciamento contrário do prefeito. Somos o país que mais mata transexuais e travestis. Rejeição familiar, marginalização social e impunidade explicam este número; o apoio verdadeiro dos governos na inclusão destas pessoas no mercado de trabalho poderia reverter cenário. Mas para isto, é preciso antes reconhecer a própria transfobia e respeitar as pessoas!”

Sociedade pune

A história de Fabyanna é uma mostra dessa sociedade transfóbica que pune. “Desde pequena era evidente que tinha algo em mim que não condizia com meu sexo biológico. Assim fui crescendo, enfrentando o preconceito da família, na escola, na rua, no parque… Aos 18 anos saí de casa e decidi me tornar a Fabyanna com a ajuda de uma amiga trans.”

Via de regra em um país cheio de preconceitos, ela conta que passou por todas as adversidades possíveis e imagináveis. “Como uma única chance de sobrevivência me sobrou uma esquina na antiga boca do lixo de São Paulo, nos fundos da estação da Luz. Ali comecei uma vida de prostituição.”

Fabyanna relata ter resistido aos convites de seus clientes para se drogar. “Me mantive firme, sabia que se entrasse nesse mundo com certeza não viveria muito. Me negaram a boneca que eu tanto queria quando pequena, me negaram afeto e compreensão. E maior de idade, sem rumo, sem família, sem terminar o ensino fundamental e sem nenhuma perspectiva, o Estado também falhava comigo todos os dias, negando minha existência, fingindo não me enxergar. Como se aquela esquina fosse meu devido lugar por ter tido audácia de me assumir e quebrar padrões e regras. Essa era talvez minha punição. Mas com o passar dos anos, e com a ajuda de minha religião que é de matriz africana, me reergui, juntei os cacos e me refiz.”

Foi para isso que a Secretaria de Direitos Humanos da gestão Haddad criou o Transcidadania, lembra Sottili. Um programa educacional para construção da cidadania, com cursos de direitos humanos, formação da rede de ensino para atender a essa população, acompanhamento durante os dois anos de permanência no programa. “Só assim tornaremos essa sociedade mais justa e com direitos igualitários”, diz Fabyanna.


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