Estereótipos e preconceitos

Nas reportagens criminais, imprensa adota o lado da acusação, aponta pesquisa

Versão dos policiais e promotores é adotada na maioria das matérias sobre crimes. Defesa é ouvida em apenas 3,5% dos casos

Wilson Dias/agência Brasil
Wilson Dias/agência Brasil
Viés acusatório da imprensa fragiliza o direito de defesa e favorece o encarceramento em massa, aponta criminalista

São Paulo – Pesquisa realizada pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), em parceria com o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), aponta que 74% das matérias jornalísticas sobre casos criminais e temas relacionados à segurança pública na imprensa ouvem apenas fontes de acusação, como policiais. Além disso, 57% das matérias tomaram um posicionamento mais alinhado com a acusação, ao passo que apenas 3,5% adotaram a perspectiva da defesa. Os 39,5% restantes não tomaram posição. Intitulado Mídia, Sistema de Justiça Criminal e Encarceramento: narrativas compartilhadas e influências recíprocas, o levantamento foi encomendando pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

O estudo analisou 474 notícias publicadas, entre 2017 a 2018, por 63 veículos de informação de todo o Brasil. Os pesquisadores relacionaram a cobertura da imprensa com 681 sentenças judiciais produzidas em 12 estados, nesse mesmo período. Além disso, foram feitas 26 entrevistas com atores do sistema de justiça criminal.

Um quarto das notícias (25,1%) analisadas não relatam quais fontes foram ouvidas. E apenas um terço dos textos jornalísticos ouviu a voz de mais de uma fonte. Quando estas eram identificadas, praticamente a metade (47,1%) era composta por policiais. Por outro lado, 64% das reportagens nem sequer tinham autor identificado.

De acordo com a diretora-executiva do IDDD, Marina Dias, os dados revelam que a “cultura punitiva” é arraigada na sociedade brasileira. “Isso se manifesta em todas as instituições e espaços, não é diferente na imprensa”, afirmou a advogada, em entrevista a Glauco Faria, para o Jornal Brasil Atual, nesta quinta-feira (29).

Linguagem

Marina aponta que, além das fontes, o punitivismo também se expressa na linguagem adotada nas reportagens. “Muitas vezes uma pessoa que acaba de ser presa, ou está sendo acusada de um crime, mesmo sem uma decisão transitada em julgado, já é tratada como culpada”. Ela disse que desequilíbrio na cobertura traz danos tanto para o funcionamento do sistema de Justiça, como também para a imprensa. “Um processo justo tem um equilíbrio entre a defesa e a acusação, assim como uma boa reportagem também é fruto de uma apuração rigorosa pela imprensa de todos os lados envolvidos”.

Uma das causas desse tipo de distorção é que o tempo da notícia é difere do tempo do processo. Na maioria das vezes, os jornalistas se interessam pelo crime ocorrido e seus desdobramentos mais imediatos, como a apresentação da denúncia. Enquanto que a defesa executa o seu trabalho ao longo do processo, quando são colhidas as provas e ouvidas as testemunhas. “O tempo do processo é alargado. Existe muitas vezes uma ânsia por uma resposta que é a do tempo da notícia. Ajustar esse tempo com o do processo é um grande desafio”.

De fonte à testemunha

A pesquisa também aponta que, maioria dos casos, o policial também aparece como o principal personagem retratado nas imagens trazidas pelas reportagens. Nesse sentido, reforça a centralidade da instituição policial no imaginário visual sobre a persecução penal. Além disso, também serve para reforçar a credibilidade dos agentes policiais que muitas vezes são as únicas testemunhas que constam na ação penal. Esse cenário é predominante nas prisões por tráfico de drogas.

“A gente acaba tendo um testemunho que não é imparcial. Embora exista uma percepção do Judiciário de que que o policial tem fé pública, e não teria motivos para mentir, as coisas não são tão simples assim. O policial é aquele que efetuou a prisão. De alguma forma, ele quer chancelar o ato pelo qual foi responsável. E quando a imprensa também traz o policial como aquela fonte que tem maior legitimidade, de alguma forma, está reforçando isso também”.

Interrogações

Para a criminologista, o jornalista deve desconfiar de todas as fontes. Citando o professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) Eugênio Bucci, Marina afirma que a imprensa deve ser a portadora das interrogações que os cidadãos têm o direito de dirigir ao poder. “Por que aquele delegado, por exemplo, logo após uma prisão, está apresentando uma informação que deveria ser sigilosa? Por que resolve exibir uma pessoa acusada algemada perante às câmeras? Existe interesse público numa ação como essa?”

Ao tender para a acusação, a imprensa acaba colaborando para violações de princípios constitucionais e democráticos, como o direito de defesa e a presunção da inocência. Ela lembra, ainda, que a esmagadora maioria das reportagens (98%), segundo a pesquisa, tratam de casos criminais específicos, ignorando o contexto social geral. O que acaba contribuindo para reforçar estereótipos e preconceitos, estimulando ainda mais o encarceramento em massa, que, por sua vez, alimenta a própria criminalidade, já que as principais facções criminosas se organizam a partir dos presídios superlotados.

Assista à entrevista

Redação: Tiago Pereira


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