Caminho da terra

Incra tem seus 50 anos de história contada em livro por servidores

Missão do Incra na promoção da reforma agrária, suas conquistas, desafios e limitações, transborda em 23 crônicas escritas por 17 servidores

Reprodução fetape
Reprodução fetape
Bolsonaro excluiu a reforma agrária do governo e o tema foi excluido das prioridades do Incra. Famílias assentadas seguem desassistidas

São Paulo – Na década de 1970, com a criação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a política agrária estabelecida pelo governo militar para a Amazônia consistia em assentar pessoas de outras regiões na fronteira com o Acre. Somente os servidores mais resilientes conseguiam trabalhar em situações tão insalubres e desafiadoras. Em 1981, dezenas de famílias atingidas pela barragem da Usina de Itaipu tiveram de viajar 21 dias de Santa Helena (PR) a Rio Branco. Cerca de 5 mil quilômetros.

Essas famílias nem imaginavam que iriam desbravar parte da Floresta Amazônica, abrindo caminho na mata arriscando suas próprias vidas. Tampouco virar estatística perversa diante de uma reforma agrária que foi comparada a “campos de concentração”.

Tempos depois, um jornal de uma localidade no Acre trazia como manchete “Filha de assentado do Incra morre de inanição”. A mãe e o pai morreram de malária e a filha pequena, sem ter como sair do lote para buscar por socorro, morreu ali mesmo.

“Nós, servidores, submissos à rigidez daquele momento, obedecíamos cegamente às determinações superiores, sem questionar, sem polemizar, sem retrucar. Sabíamos, no fundo de nossa alma, que no momento em que deixássemos o assentado em seu lote, sua sorte estava selada e, talvez, não o víssemos nunca mais. Sua chance de sobreviver àquelas intempéries eram mínimas”, conta o historiador Francisco José Nascimento, que ingressou no Incra em 1978.

Pilares do Incra

Ainda na ativa, Nascimento é autor do capítulo Onde enterrei meu coração, um dos 23 que compõem o livro Incra 50 anos – a autarquia sob o olhar de seus servidores (clique e leia), lançado no último dia 9. Conforme relata ainda, o capítulo dos paranaenses foi especial para aqueles que, a exemplo de Nascimento, ajudaram a implantar os pilares da autarquia na região. De tão forte que se tornou, chegou a ser mais importante que o próprio Executivo estadual.

“Além de nossas atividades diárias, alguns tiveram que fazer partos, no meio do mato; dar a extrema-unção aos moribundos, mesmo sendo ateu; enterrar defuntos e, só depois beber, beber muita cachaça para esquecer as agruras do cotidiano. Não nos deixamos corromper, não vendemos nossa dignidade, doamos nosso sangue e a nossa vida pelo bem-estar dos trabalhadores rurais. Comemos o pão que amassamos junto com o nosso suor e quase nunca somos reconhecidos. A escola Incra forjou pessoas capacitadas e comprometidas”.

A ideia era publicar o livro no ano passado, no aniversário de 50 anos, em julho passado. “Iniciamos o processo para a sua confecção, mas não foi possível finalizar. Por isso lançamos agora. O livro conta um pouco da história do Incra, com feitos memoráveis, dificuldades e até fracassos das ações dos sucessivos governos nos ultimos 50 anos”, disse à RBA Reginaldo Marcos Felix de Aguiar, diretor de administração e finanças da Associação Nacional dos Servidores Públicos Federais Agrários (Cnasi-AN).

Escassez de recursos

“São cinco décadas de história dessa autarquia, de momentos de grande relevância e prestígio, mas também de amargos períodos de desvalorização, escassez de recursos e redução de efetivo, como agora. A jornada do Incra se mistura com a história contemporânea do Brasil, com seus altos e baixos. De protagonista nos esforços governamentais pela integração do país, com reconhecimento tal a representar em si toda a presença do Estado no interior do país, chegou a ser extinto”, diz o prefácio.

A autarquia foi criada em 9 de julho de 1970, para fazer a reforma agrária, manter o cadastro nacional de imóveis rurais e administrar as terras públicas da União. O agravamento dos conflitos agrários no norte do país, no início da década de 1980, levou à criação do Ministério Extraordinário para Assuntos Fundiários e dos Grupos Executivos de Terras do Araguaia/Tocantins (GETAT) e do Baixo Amazonas (Gebam).

Política agrícola e fundiária

Em outubro de 1985, época de muito conflito agrário sobretudo na região Norte, o governo de José Sarney elaborou o Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA) e criou o Ministério Extraordinário para o Desenvolvimento e a Reforma Agrária (Mirad). Mas praticamente não saiu do papel. Em 1987, o Incra foi extinto e suas atribuições foram transferidas para o Ministério da Agricultura.

Desse modo, segundo Aguiar, a Cnasi-AN, junto às associações regionais e os trabalhadores, se aliou a outras entidades para restabelecer a autarquia. “A campanha foi crescendo e ganhou as manchetes dos meios de comunicação do país e sensibilizou parlamentares. Em 1988, foi promulgada a atual Constituição Federal, cujos artigos 184 a 191 tratam da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária. Sendo que o Incra, principal órgão executor da Reforma Agrária, estava extinto”.

Como autarquia responsável prioritariamente pela execução da reforma agrária e do ordenamento da estrutura fundiária, foi restabelecido em 29 de março de 1989, quando o Congresso Nacional rejeitou o Decreto-lei 2.363, de 23 de outubro de 1987. No entanto, o órgão permaneceu praticamente paralisado, por falta de verba e de apoio político”, disse o dirigente.

Ocupação do território

No prefácio, Aguiar e Djalmary de Souza e Souza, presidente do Sindicato Nacional dos Peritos Federais Agrários (SindPFA) dizem que a missão do Incra envolve as belezas e glórias da promoção da justiça social e democratização da terra. E também os dissabores e dificuldades de um país que ainda resiste a se reconciliar com seu passado. E principalmente de corrigir os erros relacionados à conturbada ocupação do seu território, que privilegiou poderosos e endinheirados, marginalizando a maioria.

Com a chegada de Jair Bolsonaro ao poder, com a eleição em 2018, a reforma agrária foi excluída da pauta do governo. E tampouco é prioridade dentro do próprio Incra. Os títulos continuam sendo emitidos, mas o Estado se exime de todas as responsabilidades após a concessão dessa titulação. E as famílias ficam sem as condições necessárias para viver e produzir.


Leia também


Últimas notícias