Anuário de Segurança

Aumento das mortes violentas na pandemia mostra efeito de mais armas na sociedade

Após dois anos em queda, mortes violentas tiveram alta de 5% no Brasil em 2020. Número de armas nas mãos de civis dobrou em três anos

Marcelo Camargo/EBC
Marcelo Camargo/EBC

São Paulo – No contexto da pandemia, o Brasil teve alta no número de mortes violentas intencionais em 2020 e reverteu uma tendência de queda que vinha registrando há dois anos. Houve 50.033 mortes no ano passado, aumento de quase 5% na comparação com 2019, quando 47.742 pessoas foram vitimadas. A categoria de mortes violentas intencionais soma homicídios dolosos, que respondem por 83% dos casos, latrocínios, com 2,9%, lesões corporais seguidas de óbitos (1.3%) e mortes decorrentes de intervenções policiais (12,8%)

Os dados fazem parte do 15º Anuário de Segurança Pública de 2020, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e lançado na quinta-feira (15). A publicação levanta diversas informações relativas à violência no país. E, entre a variedade de dados, indica também que houve aumento de armas de fogo em circulação. Uma explosão de registros que dobrou em três anos. 

Até 2017, com base em informações do Sistema Nacional de Armas (Sinarm), da Polícia Federal, o país continha 637.972 registros de armas ativos. Ao final de 2020, de acordo com o Anuário de Segurança Pública, já eram 1.279.491 de armas nas mãos de civis. Um aumento de mais de 100%. O que também significa, de acordo com o pesquisador do FBSP e cientista de Humanidades pela Universidade Federal do ABC (UFABC) Dennis Pacheco uma arma particular disponível para cada grupo de 100 brasileiros. 

Mais armas, mais violência

Segundo o pesquisador, em entrevista a Glauco Faria, do Jornal Brasil Atual, o número maior de armamentos em circulação é que o também explica o crescimento nas mortes violentas intencionais mesmo em meio à restrição de circulação. A relação, ainda de acordo com Pacheco, prova os estudos históricos que apontam para mais armas, mais violência. “O governo Bolsonaro trouxe uma série de medidas de flexibilização no controle de armas e isso fez com que de 2017 para 2020 o número de armas nas mãos de civis dobrasse. E nesse mesmo período tivemos também uma diminuição da destruição de armas por parte do Exército de 73%”, observa.

“E isso mesmo neste contexto em que a gente sabe que essas medidas são impopulares. Quer dizer, 70% dos brasileiros são contra a flexibilização do acesso de armas, a gente acompanha também esse aumento nas mortes violentas intencionais. Esses dados estão relacionados sim. Existe uma série de pesquisas e evidências indicando para essa relação de aumento da circulação de armas e de aumento da letalidade violenta. O Atlas da Violência sempre publica dados nesse sentido, relacionando aumento de homicídios ao aumento de circulação de armas”, completa Pacheco. 

A edição de 2020 do Anuário aponta para um aumento expressivo da violência por arma de fogo em estados do Norte e Nordeste. Com destaque para Ceará (45,2%), Bahia (44,9%), Sergipe (42,65) e Amapá (41,7%). A avaliação do pesquisador é que, além da “corrida armamentista”, o motim de policiais militares entre fevereiro e março do ano passado no Ceará, “desestabilizou uma série de políticas públicas que estavam sendo desenvolvidas no estado que era um dos principais responsáveis pela redução nas mortes violentas intencionais de 2018 para 2019”, pontua. 

Racismo à brasileira

Nos demais entes federativos, a análise é de que, apesar da queda nos crimes patrimoniais  – (roubos de veículos (-27,6%), furtos de veículos (-25,1%), roubos a estabelecimentos comerciais (-27,2%), roubos a residência (-19,1%) e roubo a transeunte (-37,9%) –, houve “aumento da competitividade violenta das facções criminosas. Especialmente em estados estratégicos que são rotas importantes para o tráfico de drogas”, garante o pesquisador. 

Dos mais de 5 mil municípios, 138 concentram quase 40% das mortes, conforme o estudo. O perfil das vítimas, contudo, permanece imutável. A maioria são homens (91,3%), negros (76,2%) e jovens (54,3%). Segundo Pacheco, essa manutenção revela a “resistência (das autoridades) em investir em políticas focalizadas nesse grupo de maior vulnerabilidade”. Conforme reportou a RBA na divulgação do Anuário, nesta quinta, a população masculina, negra e jovem da população é também o principal alvo da letalidade policial que também aumentou. Em 2020 foi o ano em que as forças de segurança nunca mataram tanto desde 2013, quando os dados começaram a ser coletados pelo Fórum. 

Letalidade policial

Pelo menos 6.416 pessoas foram mortas pela polícia. O pesquisador mostra uma relação da estrutura racista da sociedade brasileira que se reflete na violência do Estado. Mas ele também atribui essa letalidade ao presidente da República, Jair Bolsonaro, que constantemente passa mensagens de apoio a ações desse tipo por parte dos agentes. “O que a gente nota é uma tentativa de instrumentalização política-ideológica do presidente em relação aos policiais”, afirma. 

“E isso é um demonstrativo da falta de controle das polícias. Porque onde a gente teve dispositivos de controle sendo implementados, ainda que localizados, pontuais, vimos uma queda significativa como aconteceu no Rio de Janeiro”, cita Pacheco, se referindo à determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) que limitou operações em favelas e periferias do estado fluminense durante a pandemia. Apesar de parcialmente cumprida, com algumas violações, como no Massacre do Jacarezinho neste ano, o Rio registrou a maior queda no número absoluto de mortes. Passou de 1.814 vítimas, em 2019, para 1.245. 

O pesquisador chama atenção também para a responsabilidade do Ministério Público na letalidade policial ao não cumprir obrigação constitucional. “Porque se a polícia consegue agir de maneira tão violenta, sem nenhuma proporcionalidade no uso da força, é porque o Ministério Público não está fazendo seu papel de monitorar e controlar externamente a atividade policial”, afere. 

A LGBTfobia

Outro dado destacado entre os segmentos mais atingidos pela violência no Brasil, expõe a vulnerabilidade da população LGBTQIA+. Neste grupo, o número de homicídios no ano passado cresceu 25% e de estupro 21%. Também houve alta de 21% nos dados de agressões. Foram 1.169 registros de lesão corporal em 2020, ante 967 em 2019. 

“Eu entendo como parte da consequência desses discursos intensificados, promovidos também pelo presidente da República e por um setor político que instrumentaliza o ódio contra a população LGBTQIA+ para obter rendimentos políticos e eleitorais. Mas também me parece sinalizar para um aumento da vontade política e institucional de registrar esses casos e quem sabe talvez enfrentá-los”, analisa Pacheco. 

O pesquisador e cientista conclui que esse cenário de violência no Brasil também está relacionado ao modelo de encarceramento em massa. Em que o policiamento é muito focado em prisões e no combate ao tráfico varejista de drogas que não distingue usuários de traficantes. “E isso acaba sendo um prato cheio para as facções criminosas, justamente porque você tem pessoas que não deveriam estar presas, em primeiro lugar, sendo coagidas por essas grandes facções”. 

Solução

No cárcere ainda, o Anuário levantou que para o contingente de 753 mil presos, à época, as condições são péssimas sem qualquer controle também da pandemia de covid-19. Até junho, apenas 0,2% da população prisional estava vacinada com duas doses. 

“As soluções para os problemas da segurança pública não são extremamente complexas, falando em controle da letalidade policial. As soluções são administrativas. Implementar maior controle sobre as policiais demanda vontade política, especialmente do Ministério Público. No que diz respeito às mortes violentas intencionais, é possível fazer transformações significativas se a gente começar a investir em políticas públicas focalizadas, então romper com essa narrativa de que é preciso investir em políticas universais”, finaliza Dennis Pacheco. 

Redação: Clara Assunção – Edição: Helder Lima