AÇÕES POLICIAIS

Após Pernambuco e Goiás, doutora em segurança pública chama governadores à responsabilidade

Eles “estão terceirizando a segurança pública para lógicas corporativistas, servindo de animadores de auditórios de resultados operacional e ventríloquo de má notícia”, afirma doutora em segurança pública

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A antropóloga Jacqueline Muniz, professora da Universidade Federal Fluminense e especialista em Segurança Pública

São Paulo – A doutora em segurança pública Jacqueline Muniz foi enfática ao analisar as condutas policiais em Pernambuco e em Goiás nos últimos dias. Ela enxerga os governadores como “responsáveis pela ação e inação” das atitudes dos policiais. E a leitura não vale apenas para os casos citados. “Os governadores estão terceirizando a segurança pública para lógicas corporativistas, estão servindo de animadores de auditórios de resultados operacional e ventríloquos de má notícia”, afirmou, acrescentando: “O governante tem de dar a missão e tem de dar os meios. Se não deu a missão, liberou os meios para agir com sua própria cabeça diante de sua própria sentença”.

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Jacqueline classifica como “muito graves” ambos os casos, afirmando que eles têm em comum a “ingovernabilidade, a fragilidade dos mecanismos de controle da ação policial, o abrir mão do exercício de governo”. Para a doutora, “seja em um governo conservador, seja um progressista, é necessário governar, gastar tinta da caneta, exercer o comando. Porque quem é comandante-em-chefe das polícias é o governador. Ele não dar uma missão ou não dar uma ordem é deixar em aberto para que essa ordem seja preenchida como um cheque em branco”, diz. “Não dá mais para assistir morte das pessoas, 28 corpos caídos no Jacarezinho, e você ter políticos que choram junto com a população quando eles deviam governar.”

Problema grave

Professora do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF), Jacqueline Muniz destaca ser esse um problema grave no país. “O Brasil não repactuou os mandatos de polícia, que seguem como um cheque em branco, como uma procuração em aberto que cada um preenche como quer” diz. “Por isso é importante ter política pública de polícia, de policiamento e de segurança. Do contrário, é isso que está. O governador vira ventríloquo de má notícia as quais ele não quis chancelar.”

Autonomização predatória

Especificamente sobre a ação da polícia em Pernambuco, durante o #29M pelo Fora Bolsonaro, Jacqueline Muniz afirma que o que se explicitou foi uma autonomização. “O comandante tinha de ter um planejamento. Essa a operação não começou ‘ontem’, não se ficou sabendo da manifestação na última hora. É uma manifestação de larga escala, assim como, por exemplo, o Galo da Madrugada, que sai com quase um milhão de pessoas. O governador não quis saber qual o plano de ação de sua polícia? Não estabeleceu quais são as diretrizes e prioridades? Então ele é co-responsável, seja porque não deu a ordem, tornando os meios emancipados de sua finalidade política”, avalia.

“A ideia de que não deu a ordem é tão grave quanto ter dado uma ordem equivocada, ou seja, não passou por ele o planejamento policial de uma operação de larga escala. É grave. Isso demonstra ingovernabilidade, baixa institucionalidade na tomada de decisão policial, possibilitando autonomização predatória de uso excessivo de força. Aliás, esse é o grande problema.”

Não tem ação pessoal

O fato de em Goiás a ação, em uma análise primária, ter sido tomada por um policial não muda a natureza da análise. “Não tem ação pessoal. Se você veste uma farda e uma arma na mão, tudo isso com recursos públicos e estatais, você está regido pelos protocolos e procedimentos operacionais da organização. Se você se sente à vontade para não cumprir a doutrina de uso da força de sua polícia é porque os mecanismos internos e externos de controle são frágeis”, considera.

“Porque que acontece com frequência uso abusivo de força, seja em ação coletiva, como Pernambuco, seja numa ação pontual individualizada, em Goiás? Porque não se produz governabilidade, não se exerce governo sobre a polícia. Na verdade, se brinca com a polícia e se improvisa com meios de força, fazendo agrados profissionais, cedendo a chantagens corporativas, fragilizando-se a institucionalidade. É por isso que esses fatos se repetem de forma alarmante Brasil afora. Antes de ser bolsonarismo, ou não, isso é um problema crônico.”

Sol nos porões decisórios

A especialista disse, ainda, já ser hora de as lideranças políticas passarem a encarar o problema da segurança pública de maneira séria. “E não tentando buscar cooptação de policiais com agrados pecuniários, aderir a chantagens corporativas e, com isso, sabotar a institucionalidade das polícias. Polícias são estruturas públicas estatais que permanecem. Governantes passam”, reforça.

“Todas as reformas de polícia na Europa, no mundo democrático, partiram do controle do uso da força, do controle da ação policial como mecanismos de governabilidade transparentes. É preciso colocar luz do sol nos porões decisórios. Ter exercício de governo no controle da ação policial, seja no cotidiano, seja em eventos larga escala, seja em ações excepcionais. É disso que se trata, tem de ser sério, porque custa a vida, custa a liberdade, custa um olho”, completa Jacqueline Muniz.