Luta por moradia

Famílias de refugiados ocupam prédio abandonado no centro de São Paulo que deve R$ 140 mil de IPTU

Movimento denuncia truculência policial e defende ocupação, formada por maioria de haitianos, como “retomada da verdadeira história” da origem negra do bairro da Liberdade

Amanda Alves/A Verdade
Amanda Alves/A Verdade
O acolhimento aos haitianos também paga parte da dívida que o Brasil fez por sua atuação em Missão da ONU no país caribenho, diz MLB. Famílias de migrantes de outros estados também ocupam o prédio

São Paulo – Em meio às denúncias de despejo e alta na inflação do aluguel, cerca de 80 famílias de refugiados no Brasil e migrantes de outros estados ocuparam na madrugada de domingo (13) um prédio abandonado no bairro da Liberdade, região central da cidade de São Paulo. De acordo com o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), que administra a ocupação, o edifício estava há pelo menos 10 anos desabitado, sem função social. 

A mais nova ocupação da capital paulista é, segundo seus organizadores, “reflexo da situação vivida pelo povo pobre no Brasil” e do déficit habitacional. Até 2019, a prefeitura de São Paulo estimava o déficit em 474 mil domicílios, mas urbanistas e pesquisadores apontam para uma demanda superior a um milhão de moradias. Levantamento da Campanha Despejo Zero revela ainda que 3.970 famílias já foram despejadas no estado de São Paulo durante a crise sanitária. Além disso, há outras 34.454 ameaçadas de remoção.

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Ocupar ou ficar sem casa

Há um ano acompanhando as famílias da ocupação, formadas principalmente por imigrantes haitianos, mas com origem também na Bolívia, Venezuela e Holanda, o MLB descreve que a maioria está em situação de vulnerabilidade socioeconômica, agravada pela pandemia, que afetou ainda mais a renda dessas famílias. Grande parte é de trabalhadores informais, que ficaram sem condições de arcar com o aluguel dos pensionatos e cortiços em que viviam na região. O movimento afirma ter relatos de arrendamentos que eram reajustados mensalmente pelos proprietários. 

Uma moradora que preferiu não se identificar conta que, diante da omissão dos governos, “não tivemos outra opção senão ocupar esse espaço”. “As pessoas que hoje ocupam aqui são trabalhadores, mulheres, mães, negras e negros, pessoas refugiadas, maioria desempregada, buscando no Brasil a solidariedade e uma forma de reconstruir suas vidas. Não se consegue emprego. Desde que chegamos aqui trabalhamos na reciclagem, em galpões costurando centenas de roupas por dia, como seguranças, caixas de supermercado, trancistas… Mas não temos mais nenhum emprego, estamos abandonados. O preço dos alimentos não para de aumentar, e os aluguéis também. Precisamos de um teto para proteger nossas crianças do coronavírus”, lamenta.

A ocupação também abriga migrantes de estados como Tocantins, Ceará, Pernambuco e Bahia desempregados, que provam que o Brasil produz seus próprios refugiados.

Truculência policial

Nas primeiras horas de ocupação, uma vigília foi organizada para acompanhar a entrada das famílias. Quando elas já estavam no local e os apoiadores se preparavam para adentrar, policiais militares chegaram para tentar impedi-los. Houve um início de confusão com denúncias de truculência policial. O jornalista Carlos Machado, do veículo A Verdade e assessor de comunicação do MLB, filmou o momento em que um PM, com uma enxada nas mãos, empurrou uma liderança, ordenando seu afastamento. 

O sem-teto, então, respondeu que “não queria confusão”, mas o policial reagiu empurrando-o novamente e gritando “está todo mundo abordado, vai para lá”. O PM seguia gritando, ameaçando levar os apoiadores à delegacia, quando, na sequência, avistou o jornalista filmando. “Você com essa câmera vai também”, o intimidou, tentando tomar de suas mãos o equipamento. A agressão só foi impedida por uma advogada do movimento, que tentava dialogar com os agentes.

Não é possível identificar pelas imagens o nome do policial. A reportagem aguarda nota da Secretaria de Segurança Pública e da Polícia Militar respondendo aos questionamentos sobre a conduta do PM ante a ocupação dos refugiados no prédio abandonado.

Prédio acumula dívidas

Do local, duas lideranças, Guilherme Brasil e João Coelho, acabaram sendo detidas e levadas para depoimento no 78º Distrito Policial, no Jardins. Após esclarecimentos, os militantes foram liberados pelo delegado de plantão, que confirmou que uma ordem de remoção só poderá ser emitida via processo de reintegração de posse, expedida por juiz. 

Fechado há pelo menos 10 anos, segundo moradores da região, o prédio está em débito com a prefeitura de São Paulo. São mais de R$ 140 mil em dívidas de Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), conforme consulta da reportagem ao portal da Secretaria Municipal da Fazenda. O movimento aponta que o edifício pertence ao engenheiro Sérgio Saccab. Ele seria também proprietário de outros 40 imóveis localizados no centro de São Paulo, com outros débitos em aberto. 

Prédio abandonado há 10 anos ocupado por refugiados deve mais de R$ 140 mil de IPTU

O MLB conta, no entanto, que ainda não conseguiu diálogo com o município para garantir que a moradia seja mantida. Os militantes estão em contato com vereadores do campo popular para ganhar apoio à ocupação. Algumas áreas do edifício estão sendo resgatadas pelos moradores. Desde a madrugada eles fazem mutirões de limpeza para tirar toda a sujeira e as marcas do tempo que revelam o abandono do lugar. Um espaço para as crianças e uma cozinha coletiva foram organizadas para uso inicial dos ocupantes. Segundo a administração, eles se dividem em comissões para manter o distanciamento, o uso de máscaras e álcool em gel.

Liberdade e memória do povo negro

O prédio da ocupação dos imigrantes refugiados também ganhou o nome de Jean-Jacques Dessalines. Em referência ao líder da Revolução Haitiana que libertou o país da condição de colônia da França em 1804 e se tornou a primeira nação da América Latina e Caribe independente, comandada por escravos. O endereço também é simbólico do ponto de vista de “retomada da verdadeira história da Liberdade”, como resume o assessor do MLB sobre o bairro que tem origem negra. 

O bairro da Liberdade é conhecido como o reduto nipônico fora do Japão. Mas há anos movimentos de luta por igualdade racial e historiadores apontam que a história negra do local foi apagada, como outras memórias da escravidão no país. O bairro abriga a Capela dos Aflitos, que foi o primeiro cemitério público da capital paulista ativo entre os séculos 18 e 19, onde negros escravizados, condenados e outras pessoas marginalizadas eram sepultadas. A região também foi palco de castigos públicos de escravizados durante o horror daquele período, e depois sediou as primeiras residências de pessoas negras alforriadas. 

O acolhimento aos haitianos também paga parte da dívida que o Brasil fez em sua atuação na Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (Minustah). “Grande parte da opressão que o povo haitiano sofre também veio de um processo em que militares brasileiros foram usados para defender o que não era exatamente interesse do povo haitiano. Apesar de se dizerem (haitianos) bem recebidos aqui no Brasil, tem isso de que, antes de eles virem, a intervenção brasileira também os reprimia”, afirma Carlos Machado. 

Campanha de doações

Vivendo as primeiras 48 horas decisivas de qualquer ocupação de prédio abandonado, e na iminência de uma ordem de reintegração de posse, as famílias de refugiados fazem campanha para arrecadar insumos básicos, como água, cobertores, absorventes, talheres. (A lista completa de itens que podem ser doados está na página “Ocupação dos Imigrantes” no Instagram). “As famílias chegaram aqui de todas as maneiras possíveis, desde aviões até a pé, buscando aqui a oportunidade de uma vida melhor. Com o aprofundamento da crise, deixaram de conseguir o mínimo necessário para viver”, resume o coordenador da ocupação, Guilherme Brasil.

Abandonado, prédio causava insegurança na população da região, e era usado ilegalmente para o descarte de lixo. Ocupantes deram início a revitalização do espaço


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